domingo, 8 de abril de 2007

canção d’aluada
para m.

podou-lhe a perna um acidente...
se em torno a malta ri, indecente,
quando escorre, lesma esquecida,
de par em par em par doente,
– ignora todo o malquerente,
fecha as pálpebras dos ouvidos.

o sangue ou o bosque de abetos
realçam pungentes insetos
que dançam nos globos dos olhos...
e na pelanca encanecida
queixam-se seus anos de vida
feito um bater d´água em abrolhos.

deus está-lhe sempre tão perto...
e se anoitece e chove fetos,
como se fora o último amigo
(e ele soubera dos ocasos
a urgência rubra dos cavalos),
ela lhe faz um só pedido:

"dai-me um desses, pai, pr´eu velar,
berçar ao vento, acalentar!
súbito me farei lactante,
de um leite azul e muito grosso;
em meu seio como num poço,
receberá beijos na fronte!"

deus, para ela, não é silêncio:
abelhas com patas de incenso,
ou as gaivotas de lençol...
a tinta verde dos fadários
na carne viva dos diários
ao sabor ferroso do haldol.

e à vida sentida sem margens,
deriva, stultífera navis,
arrebenta a quilha da testa;
degradando-se em tons de maio,
céu e mar se beijam no raio,
– e a barca vai a pique, em festa.

no idioma dos fogos sujos,
líquen da voz de caramujos,
língua de carvão, frágua e ferro,
fala com dentes, pêlos, unhas,
com a morte por testemunha:
há mil gritos em cada berro.

claudica com severo olhar...
se alguém lhe oferece um manjar
– entre anjo, mendiga e sibila,
camélia, garçonete e gueixa –,
mordiscando a carne da ameixa,
preclara, antevê grande dia;

se lhe negam, porém, já viu:
nos cílios acende o pavio;
na pança encruada dos sapos,
transtorna pra fora do leito
a manta de banha e despeito,
e desdobra a língua entre cactos:

"hei, bruxarada, bruxarada,
quando faz rir a madrugada,
envido de cima do outeiro:
vou defecar em seus sapatos,
envenenar seus cães e gatos,
vou tacar fogo em seus cabelos!"

porém a ira logo termina,
ela é novamente a menina;
retira do caule um jasmim,
florescido entre as muitas farpas
do arame e a galharia e as sarças,
– o vôo ambíguo do rubim.

pequena, frágil, recolhida,
bem quando mais lhe dói a vida,
claustra o brilho opaco dum monge.
respira, parte a flor, se indaga
(o corpo nu no chão – jogada):
"como vim acabar tão longe?"

sonha a antiga vida das ruas.
vive, de resto, abandonada:
sem homem, sem filho; só a lua
que a leve de volta pra casa


Rodrigo Madeira

Um comentário:

Anônimo disse...

Este poema faz parte da série: poemas psiquiátricos, de Rodrigo Madeira.