sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O estranho caso de Grace Uei


Aproveito para divulgar UM dos contos que escrevi na antologia Então, é isso?


Grace acordou cega.
Abriu seus olhos como sempre, mas não viu o teto de seu quarto, que era pintado de céu noturno, com aquelas estrelas e planetas que brilham após um tempo de luz incidindo sobre eles. Fechou seus olhos de novo, imaginando que estava ainda em um sonho. Mas quando os abriu novamente, lentamente, a escuridão teimou em fixar-se ao seu redor.
Apavorada, gritou pelos seus pais. Eles a vestiram rapidamente, e a levaram ao hospital de Olhos. Lá, o oftalmologista usou sua lanterninha e verificou que suas pupilas não reagiam à luz.
Fizeram uma anamnese. Descobriram que há algum tempo sua acuidade visual estava piorando. Primeiro sua visão periférica. Ela tinha que voltar seu rosto para poder realmente enxergar o que estava ao lado. Depois a sua eficiência visual foi diminuindo, e ela começou a andar mais devagar, observando mais as coisas para não tropeçar ou cair. Mas só agora estava falando isso. Primeiro porque não queria preocupar os pais, segundo porque achava que era simples stress, e que logo passaria.
Outro dia, enquanto estava na sala de espera e sua mãe havia ido ao banheiro, ela sente um cheiro estranho que se aproxima, e uma mão acaricia seu rosto dizendo: “tudo ficará bem”. Aquela sensação de uma mão estranha permanece em seu rosto.
Marcaram-se novos exames.
Ela voltou para casa, mas sua vida passou a ter novas visões literalmente. Os caminhos tão trilhados, do quarto para a cozinha ou banheiro passaram a ser labirintos obscuros e trincados, cheios de armadilhas. Tomar banho, hábito tão diário e natural, passou a ser um estranhamento constante. Para Grace era como se fosse outra mão que estivesse limpando seu corpo.
Alimentar-se. Beber água. Torturas constantes em que precisava - pessoa tão independente que era - de outros para a ajudarem. Aprendeu o sistema de relógio: arroz às seis, bife às três, batatas meio-dia, feijão às nove. Grace que tinha tanta mania de limpeza e que lavava suas mãos logo ao entrar em casa, agora tinha que enfiar um dedo em seu copo para sentir aonde a água ou suco chegava. Lavar louça! Tanto quebrou que quase pensou em comprar louça de acrílico ou plástico.
Vestir-se. Outro terrorismo da cegueira. As meias são as mesmas? As cores de roupa combinam? Percebeu que certas roupas que usava antes com frequência (segundo a família) lhe eram agora “nojentas” ao tato. Recusava-se a usar aquele vestido tão batido de outrora (hoje tão duro, tão seco, tão arranhoso no corpo). Mas a maciez de outro, que ela nunca usava antes lhe agradou tanto que preferiu usá-lo agora, pois o Sentia abraçando seu corpo, num aconchego que ela tanto necessitava. Uma segunda pele protetora.
Com o tempo ela tenta se lembrar de como é seu rosto, mas percebe que ele se desfocou e permanece como nebulosa incógnita. Desorientada, um pouco apavorada, pede para sua mãe que a descreva.
Grace, seu rosto é gracioso e feminino. Seus olhos amendoados castanho- escuros são doces como mel, suas faces rosadas são maçãs de desejos, há uma marquinha de nascença entre seus olhos -, e o seu rosto vai se desenhando com as palavras de sua mãe.
Os exames médicos foram rareando. Essa doença estranha, tratada apenas como um caso extraordinário. Chamavam-no: “O estranho caso de Grace Uei”. Ou: “a cegueira de Grace Uei”. Psicólogos, oftalmologistas, cientistas, pesquisadores do mundo todo já haviam manuseado (literalmente) Grace durante este escuro ano.
Grace acorda para mais um dia. Abre os olhos e .. surpresa! As estrelas e planetas a saúdam, como se nunca tivessem saído dali. Ou como tivessem apenas feito uma rotação ou translação e tivessem voltado ao ponto de partida. Ela olha, extasiada, suas mãos, seu quarto, o caminho até o banheiro. A alegria de poder rever todas as coisas tanto reconhecidas pelo tato. A surpresa de ver as mudanças na casa... isso tudo foi enchendo Grace de uma graça suprema.
Ao entrar no banheiro corre ao espelho.
E se assusta.
Uma criatura a encara. Uma pessoa com olhos de enxofre.

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


Meu direito, silêncio


Eu não conseguia dormir por causa de tantas brigas. Acordava logo cedo com discussões. Decidi que não iria mais falar. Simples. Sem dramas. Queria paz.  Precisava de silêncio.
Meus pais contrataram uma psicóloga. Coitada, tentava conversar comigo sobre assuntos que não me interessavam. Falava das bonecas que eu não gostava. Das histórias dos contos de fada. Servia um café de mentira em uma xícara de plástico cor-de-rosa. Eu ficava entediada. Sentia falta de silêncio.
A vizinha oferecia brinquedos. Mas eu ouvi os meus pais falando que a minha tia era interesseira e vivia pensando em dinheiro. Aprendi que era errado ser assim, mesmo sem entender direito os motivos. Não seria isso que me faria falar.
Na escola perguntavam se eu não gostava da minha voz. Se eu tinha algum problema. Se eu não tinha língua. Até me faziam abrir a boca e mostrar que estava tudo certo. As outras crianças eram bobas e eu não perdia tempo tentando explicar que perdi a vontade de falar. Elas não atendiam aos pedidos de silêncio.
A professora nunca brigava comigo. Quando fazia a chamada, sabia que eu era a única a levantar a mão. Respeitava.
Em uma aula, pediu para eu buscar um material na  secretaria. A funcionária perguntou o meu nome. Eu mostrei o meu crachá. Ela insistiu. Mostrei o crachá novamente. Fiquei em dúvida se ela sabia ler, porque as letras eram grandes. Ela disse que eu deveria falar. Eu não sentia necessidade.  Mostrei o meu crachá mais algumas vezes. Ela não me deixou sair da sala enquanto não ouviu a minha voz. Por isso, perdi a aula inteira. 
Ao bater o sinal, a fome e a vontade de ir para casa foram mais fortes. Então eu falei. Ela me fez prometer que conversaria com as outras pessoas. Foi a primeira promessa que fiz contra a minha vontade. Prometi porque queria ir embora. E se corresse, conseguia comprar um lanche na saída, antes da cantina fechar.
Quando fui buscar a bolsa, a professora perguntou o que houve e eu disse: ela não respeita o meu direito ao silêncio. Não perguntou mais nada, passou a lição e fomos embora.
Depois, ainda fui obrigada a consultar com outra psicóloga. Durante uma hora ela me perguntou:
- O que você procura na minha sala? Parece que você sente falta de alguma coisa.
Silêncio.

Patricia Ortiz

sábado, 8 de dezembro de 2012

Teatro Paiol - Curitiba
As pessoas são frágeis. Os mais frágeis perdem o caráter humano e se tornam fonte de mal aos outros. Acreditam assim, conseguirem alguma imunização. Os conscientes, dessa engrenagem sórdida, surtam. São tratados por aqueles que acham normal que a vida siga desse modo. Mas é esse absurdo que nos destrói.

Ricardo Pozzo
Rua Presidente Faria - Curitiba
Dos jogos de sedução me resta a gentileza, da ânsia o desdém, e das estratégias o tédio. Não posso mentir nem sequer enganar-me, sou o reflexo invisível de minha sombra e não renuncio às minhas fugas secretas nem aos meus incessantes suicídios. Meu ofício é ser Eu e, nesse exercício perigoso, aprendi alguns truques que jamais usarei. Minha solidão é sobre humana, está além do medo ou da dor previsível e por isso amo e por isso eu danço, baby. Por isso eu danço.

Efraim Medina Reyes/ tradução Ricardo Pozzo


De los juegos de seducción me queda la gentileza, del ansia el desdén, de las estrategias el hastío. No puedo mentir y ni siquiera engañarme, soy el reflejo invisible de mi sombra y no renuncio a mis secretas fugas y mis incesantes suicidios. Mi oficio es ser yo y en el peligroso ejercicio de serlo aún más he aprendido algunos trucos que jamás usaré. Mi soledad es sobrehumana, está más allá del miedo o el previsible dolor y por eso amo y por eso bailo, nena. Por eso bailo.

Efraim Medina Reyes