quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Estação Tubo - Terminal do Campina do Siqueira - Curitiba

A Cumbuca


Lá em cima, bem em cima, onde o ar quase não existe, onde o vento é apenas uma brisa e as nuvens brincam de ser azul, repousa deus. Seu olhar de divina celestina vagueia e vagabundeia, horas fixa-se no horizonte, horas no amigo ao lado. Nuvens enroladinhas como chumaços de algodão escondem suas orelhas, se é que as tem.
Seu amigo, o anjo descaído, tem os olhos inquietos e talvez pela inquietude sejam assim vermelhos e brilhantes como rubi. Ao contrário de deus, olha com frenesi de um lado a outro. Sua nuvem, tão fofa e macia, difere-se apenas pela altura onde se encontra, um pouco mais abaixo. Seu olhar, além de vermelho, é inquiridor... interrogativo... está sempre com este olheirão para deus, que pouco se dá deste olhar. O anjo descaído há muito desistiu de tentar entabular uma conversa, deus surdo está, desde o sexto dia, quando deu por finito seu labor.
 O Anjo, às vezes cheio de tédio, apóia o queixo na mão, enquanto o cotovelo é sustentado pelo joelho e fica pulando os olhos de uma palavra à outra que vêm saltitando da terra dos homens de boa vontade. São palavras lindas, feias, com amor, com ódio, azuis, vermelhas, coloridas às vezes, com lágrimas, com risos, roídas, inteiras e aos pedaços, bêbadas e lúcidas, miseráveis muitas, esfomeadas um tanto, vêm as chorosas de dor e as de rosa cor, as que vêm rápidas como relâmpago e as que vêm se arrastando como o minuto das horas de dor. Por cima de umas vêm outras, ensimesmadas, separadas, as vezes juntas, tão juntas que parece uma só, aimeuSãoJesusCristinho... O Anjo descaído girou os olhos na órbita, soltou um enorme suspiro, esticou o olhar para deus e nada viu, olha para terra e olhar e pensar é uma coisa só. ¨Nesta cumbuca é que nunca mais vou enfiar minha mão”.


Jacira Fortes Tristão

domingo, 26 de agosto de 2012

Calçadão da Rua XV de Novembro - Curitiba

Dela



ela não se surpreende com o mundo
sua tela não tem mais imagens
suas palavras não fazem mais sentido
seu armário lotado
um comprimido
era essa a sua busca
levantou tapetes
arrastou sofá
derrubou cadeiras
monstros do porão
arrancou telhas
roeu unhas
foi tomar banho
e, eis que por rotina,
ao puxar do ralo da alma
pêlos e cabelos
enxerga, no emaranhado,
a bolinha neón
pula pelada aos saltos
escorrega
não acha pote
e a coisinha escorre,
como se o dedo estivesse embebido em kY
até que por fim, pula
quica, quica, quica
cadê?
achou
pôs um papel branco debaixo,
depois de roçar muito
e, com toda paciência,
deslizou o luminoso para o centro
dobrou bem dobradinho
esperou dias e dias
até que pôs selo!


Vivianne Moureau

sexta-feira, 17 de agosto de 2012


Alvéolos de petit pavê

Um drone
observa-me
por entre
alvéolos
de petit pavê
na cidade
tipo exportação
feita
pra ninguém

E meu irmão,
que
encontra-se
jogado
para fora do
espetáculo:

:saca de
vísceras
instituídas
em alcool,

lamenta
que a vida
é rinha
sem saída;

e a
infância
invisível,
tal qual
o mendigo,

por entre
alvéolos
de petit pavê


Ricardo Pozzo

domingo, 5 de agosto de 2012

Paço da Liberdade - Praça Generoso Marques/ Curitiba

CONVERSA COM O LOCADOR ou o silêncio que antecede a mudança


não me diga asneiras
da conta da luz,
da água,
da geladeira estragada

desligada ainda no primeiro mês do contrato
quando descobri que desligada
a diferença em kilowatts resultava em 50 reais

e a bicicleta com o guidon quebrado
é fruto da loucura do próprio cavalo
entediado com os dias de chuva,
e os males da ferrugem

e há dias a história de que sairá um mercado na frente de casa
onde antes era uma igreja,
a ilusão do pão quente atravessando a rua
ou da cerveja gelada, num momento súbito
foi-se embora quando faltou o dinheiro do aluguel

e o animal, antes extinto, em instinto se manifestou na falta

mas agora, seu locador,
não transforme seu locatário num otário,
deixe-me ao menos sair dessa com um ar de personagem pícaro...


Rafael Walter/ inverno 2011