quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

‎''E eu descobri: os portos de madrugada
preservam o exalar da recordação
daqueles que nunca caminharam por suas vielas."

Leandro Vicelli
Só deitando um pouco
no chão frio.
Apenas colando
a cabeça na terra
úmida e com cheiro forte
... de ferro.

Só encostando a alma
nas paredes do inferno,
ouvindo o fogo praguejar:
''não venha,
não chegue perto,
fique bem longe".

Apenas ouvindo
o crepitar
da lareira do mundo.
Cada estalo
é um passo meu
rumo ao infinito.
("Crepitar")

Matheus A. Quinan

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Dois poemas de Rafael Walter


Paisagem

disse-me que só o vagar lhe permitia 
a constância

não queria a certeza
queria a dúvida
expandida em caos e absoluto

a poeira contava o caminho,
não sabia dizer ao certo de onde viera
e  seguia

como poucos centavos no bolso festa ele fazia
dizia que viemos nus ao mundo
e que nada sabemos mesmo
e o resto era infinito

andava torto feito um ponto de interrogação
para endireitar os caminhos
seguia o vento
numa melodia
feito viola pela vida


haikai escatológico

escarro,  porque já não resta nada
e esse vício de saliva,  de esvaziar palavras
e emudecer o solstício ou a alvorada

Rafael Walter

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Praça Generoso Marques - Curitiba

Três Espadas

Ela lhe fala que existiu, trespassada por três espadas
Ele lhe faz sopa de letrinhas
Ela lhe fala que viu tempestades, ao chegar
Ele lhe faz molho de figos
Ela lhe fala que viveu em poeira, em dor
Ele lhe diz que há prazeres reservados
Ela lhe fala que trabalhou com as mãos
Ele deixa a louça por lavar, singelo
Ela lhe diz que sentiu as três espadas
Ele abre um livro, navio passando
Ela lhe diz de espinhos, de cabelos arrancados
Ele lhe diz de velhos cães, de poesia
Ela lhe diz de uma certa cura
Ele lhe serve torta, a massa trabalhada
Ela o beija, sincera, tonta, temerária
Ele espera, espera, espera, espera
Ela se espraia, como praia
Ele fica, e vem, como o navio ao cais


Cláudia Lopes Bório

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

quem se import?

Sid-Friaça (Pseudocanto III)

Sid-Friaça
sentado num canto do Madrugada
relata os lances que o fizeram
subir ao ascetismo.
Sid-Friaça
conta
sempre
com a sorte
pra pagar a conta.
No banco do boteco fétido
esconde e educa a prole
(a ser também asceta).
Por longos anos mourejou
na Índia, em Goa, em Moçambique,
levado pela esquadra do Restelo,
na empresa finda que o poeta canta
e que o Queirós queria reatada por Ramires.
Agora seu pendor heróico é morto
pelo excelso maquinário que o domina.
A fábrica.
A vida confinada
em meio ao torno e o ponto do relógio.

Sid-Friaça come
as moças mais insanas
de beleza e sina
oferecida aos gajos
que caminham retos
pela ponte de Bouvard
Moças gordas como pelicanos,

feias e disformes, com as banhas podres,
misto de deboche e maquilagem.
moças magras e miúdas,
pequenas e ossudas
como garças desesperadas,
gralhas presas atrás de grades.
Moças que debalde se oferecem
quando passo classe-média no Passeio.
Mas Sid não, que não é disso;
é forte e rijo
tomador do biotônico da vida
e da desesperança.
Sid ensina a todos que não há saida.
Que a moça oferta em frente à réplica
do pórtico do cemitério de Cães da cidade de Paris
é tão boa meretriz e faz gozar
como qualquer puta que há
no antro mais famoso e fino
de Campinas e Curitiba.

Sid-Friaça heróico
Sid-Friaça, ressurgido do Restelo
receita que somente presta a embriaguez noturna do bufão errante:

"A névoa não esconde todo o cinza da manhã
Seus olhos já revelam esta grave inquietação
Os ônibus lotados de fumaça e de cigarro
fedendo-lhe a miséria como lixo e como merda (...)"

Sid-Friaça
Vive
no Hades, com Elpenor.


Paulo Bearzoti, de Fator X (Cadernos Militantes nº 12, Curitiba, novembro de 2011)

domingo, 11 de dezembro de 2011

No Cabaré Verde

às cinco horas da tarde

Depois de uns oito dias a pé, perdi os coturnos
No caminho. Mas entro com tudo em Charleroi.
No Cabaré-Verde, torradas são o que há,
Com manteiga e presunto, em pedidos diurnos.

Feliz, estico as longas pernas sob a mesa
Verde e contemplo os toscos e rudes motivos
De uma tapeçaria. — Que agradável surpresa
Quando a vi, suas enormes tetas e olhos vivos.

É ela! Não existe um beijo que a apavore!
Risonha, traz a refeição sem que eu implore:
Manteiga muito boa, num prato do caralho,

Presunto róseo perfumado pelo alho.
Depois traz a cerveja, sem fazer farol
Pela espuma brilhante como um raio de sol.


Rimbaud
Outubro de 1870 (16 anos)/ tradução Antonio Thadeu Wojciechowski 10/12/ 2011

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

LÉO 6

AVISOS

Em caso de incêndio
não utilize elevadores
use escadas
salvo instrução contrária

Não fume
Não jogue lixo
Não defeque
Não ligue o rádio 
salvo instrução contrária

Por favor, Aperte a Descarga
Após Usar o Sanitário
Exceto Quando o Trem
Estiver Parado na Estação
Seja Atencioso
Com O Próximo Passageiro 

Avante Soldados Cristãos
Trabalhadores do Mundo unidos
não temos nada a perder, mas a nossa vida
Glória ao Pai
.............................. E ao Filho
ao Espírito Santo
salvo instrução contrária

A propósito 
afirmamos estas verdades evidentes
que todos os homens são iguais
que foram dotados por seu criador
de certos direitos inalienáveis
entre eles a Vida
Liberdade

......... & a busca da Felicidade

E por último mas não menos importante
que 2 + 2 são 4
salvo instrução contrária



Nicanor Parra/ de Poemas para combatir la calvicie. Antología. (Santiago, 6ªed., Fondo de Cultura Económica, 1998)/ tradução Ricardo Pozzo

sábado, 3 de dezembro de 2011

O pequeno burguês

Aquele que quer ir ao paraíso
Do pequeno burguês deve trilhar
O caminho da arte pela arte
E tragar porções de saliva:
O noviciado é quase infinito.

Lista do que você precisa saber.

Dar, com arte, o nó da gravata
Fazer deslizar o cartão de visitas
Sacudir por luxo os sapatos
Consultar o espelho veneziano
Estudar-se de frente e de perfil
Tomar uma dose de conhaque
Distinguir uma viola de um violino
Receber visitas de pijama
Evitar a queda dos cabelos
E tragar porções de saliva.

Tudo deve ser arquivado.
Se sua esposa está entusiasmada com outro
Recomendo as seguintes dicas:
Barbear-se com navalha
Admirar a beleza natural
Farfalhar um pedaço de papel
Sustentar uma conversa telefônica
Disparar um rifle
Fazer as unhas com os dentes
E tragar porções de saliva.

Se deseja brilhar nos salões
o pequeno burguês
deve saber andar sobre quatro patas
Espirrar e sorrir ao mesmo tempo

Dançar valsa na beira do abismo
Endeusar os órgãos sexuais
Despir-se na frente do espelho
Desfolhar uma rosa com um lápis
E tragar toneladas de saliva.

A tudo isso uma pergunta
Jesus Cristo era filisteu?

Como se vê, para alcançar
O paraíso pequeno-burgues
É preciso ser um acrobata completo:
Para chegar ao paraíso
É preciso ser um acrobata completo.

Não admira que o verdadeiro artista
Entretenha-se matando libélulas!

Para quebrar o círculo vicioso
Recomendam ato gratuito:

Aparecer e desaparecer
Andar em estado cataléptico
Dançar valsa nos escombros
Embalar um ancião nos braços
Sem tirar os olhos de seus olhos
Perguntar a hora à um moribundo
Esculpir no oco da palma da mão
Apresentar-se de fraque aos incêndios
Lançar-se com o cortejo fúnebre
Ir além do sexo feminino
Levantar a laje funerária
E ver se, dentro, cultivam árvores
Atravessar de um lado a outro
Sem referências ao porquê ou quando
Somente pela virtude da palavra

Com seu bigode de galã de cinema
Na velocidade do pensamento


Nicanor Parra


De [Versos de salón] (Santiago, Nascimento, 1962) tradução Ricardo Pozzo

Eu Nunca Estive Em Creta

Mas quando despertei
tinha os pés molhados
de uma luz
que atravessa
a persiana
________zarpa
e, a estas horas banha
teu rosto que flutua
- esqueceste do Nívea -
sobre as listras verdes 
do Egeu


Carmen Camacho/ tradução Ricardo Pozzo