sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O estranho caso de Grace Uei


Aproveito para divulgar UM dos contos que escrevi na antologia Então, é isso?


Grace acordou cega.
Abriu seus olhos como sempre, mas não viu o teto de seu quarto, que era pintado de céu noturno, com aquelas estrelas e planetas que brilham após um tempo de luz incidindo sobre eles. Fechou seus olhos de novo, imaginando que estava ainda em um sonho. Mas quando os abriu novamente, lentamente, a escuridão teimou em fixar-se ao seu redor.
Apavorada, gritou pelos seus pais. Eles a vestiram rapidamente, e a levaram ao hospital de Olhos. Lá, o oftalmologista usou sua lanterninha e verificou que suas pupilas não reagiam à luz.
Fizeram uma anamnese. Descobriram que há algum tempo sua acuidade visual estava piorando. Primeiro sua visão periférica. Ela tinha que voltar seu rosto para poder realmente enxergar o que estava ao lado. Depois a sua eficiência visual foi diminuindo, e ela começou a andar mais devagar, observando mais as coisas para não tropeçar ou cair. Mas só agora estava falando isso. Primeiro porque não queria preocupar os pais, segundo porque achava que era simples stress, e que logo passaria.
Outro dia, enquanto estava na sala de espera e sua mãe havia ido ao banheiro, ela sente um cheiro estranho que se aproxima, e uma mão acaricia seu rosto dizendo: “tudo ficará bem”. Aquela sensação de uma mão estranha permanece em seu rosto.
Marcaram-se novos exames.
Ela voltou para casa, mas sua vida passou a ter novas visões literalmente. Os caminhos tão trilhados, do quarto para a cozinha ou banheiro passaram a ser labirintos obscuros e trincados, cheios de armadilhas. Tomar banho, hábito tão diário e natural, passou a ser um estranhamento constante. Para Grace era como se fosse outra mão que estivesse limpando seu corpo.
Alimentar-se. Beber água. Torturas constantes em que precisava - pessoa tão independente que era - de outros para a ajudarem. Aprendeu o sistema de relógio: arroz às seis, bife às três, batatas meio-dia, feijão às nove. Grace que tinha tanta mania de limpeza e que lavava suas mãos logo ao entrar em casa, agora tinha que enfiar um dedo em seu copo para sentir aonde a água ou suco chegava. Lavar louça! Tanto quebrou que quase pensou em comprar louça de acrílico ou plástico.
Vestir-se. Outro terrorismo da cegueira. As meias são as mesmas? As cores de roupa combinam? Percebeu que certas roupas que usava antes com frequência (segundo a família) lhe eram agora “nojentas” ao tato. Recusava-se a usar aquele vestido tão batido de outrora (hoje tão duro, tão seco, tão arranhoso no corpo). Mas a maciez de outro, que ela nunca usava antes lhe agradou tanto que preferiu usá-lo agora, pois o Sentia abraçando seu corpo, num aconchego que ela tanto necessitava. Uma segunda pele protetora.
Com o tempo ela tenta se lembrar de como é seu rosto, mas percebe que ele se desfocou e permanece como nebulosa incógnita. Desorientada, um pouco apavorada, pede para sua mãe que a descreva.
Grace, seu rosto é gracioso e feminino. Seus olhos amendoados castanho- escuros são doces como mel, suas faces rosadas são maçãs de desejos, há uma marquinha de nascença entre seus olhos -, e o seu rosto vai se desenhando com as palavras de sua mãe.
Os exames médicos foram rareando. Essa doença estranha, tratada apenas como um caso extraordinário. Chamavam-no: “O estranho caso de Grace Uei”. Ou: “a cegueira de Grace Uei”. Psicólogos, oftalmologistas, cientistas, pesquisadores do mundo todo já haviam manuseado (literalmente) Grace durante este escuro ano.
Grace acorda para mais um dia. Abre os olhos e .. surpresa! As estrelas e planetas a saúdam, como se nunca tivessem saído dali. Ou como tivessem apenas feito uma rotação ou translação e tivessem voltado ao ponto de partida. Ela olha, extasiada, suas mãos, seu quarto, o caminho até o banheiro. A alegria de poder rever todas as coisas tanto reconhecidas pelo tato. A surpresa de ver as mudanças na casa... isso tudo foi enchendo Grace de uma graça suprema.
Ao entrar no banheiro corre ao espelho.
E se assusta.
Uma criatura a encara. Uma pessoa com olhos de enxofre.

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


Meu direito, silêncio


Eu não conseguia dormir por causa de tantas brigas. Acordava logo cedo com discussões. Decidi que não iria mais falar. Simples. Sem dramas. Queria paz.  Precisava de silêncio.
Meus pais contrataram uma psicóloga. Coitada, tentava conversar comigo sobre assuntos que não me interessavam. Falava das bonecas que eu não gostava. Das histórias dos contos de fada. Servia um café de mentira em uma xícara de plástico cor-de-rosa. Eu ficava entediada. Sentia falta de silêncio.
A vizinha oferecia brinquedos. Mas eu ouvi os meus pais falando que a minha tia era interesseira e vivia pensando em dinheiro. Aprendi que era errado ser assim, mesmo sem entender direito os motivos. Não seria isso que me faria falar.
Na escola perguntavam se eu não gostava da minha voz. Se eu tinha algum problema. Se eu não tinha língua. Até me faziam abrir a boca e mostrar que estava tudo certo. As outras crianças eram bobas e eu não perdia tempo tentando explicar que perdi a vontade de falar. Elas não atendiam aos pedidos de silêncio.
A professora nunca brigava comigo. Quando fazia a chamada, sabia que eu era a única a levantar a mão. Respeitava.
Em uma aula, pediu para eu buscar um material na  secretaria. A funcionária perguntou o meu nome. Eu mostrei o meu crachá. Ela insistiu. Mostrei o crachá novamente. Fiquei em dúvida se ela sabia ler, porque as letras eram grandes. Ela disse que eu deveria falar. Eu não sentia necessidade.  Mostrei o meu crachá mais algumas vezes. Ela não me deixou sair da sala enquanto não ouviu a minha voz. Por isso, perdi a aula inteira. 
Ao bater o sinal, a fome e a vontade de ir para casa foram mais fortes. Então eu falei. Ela me fez prometer que conversaria com as outras pessoas. Foi a primeira promessa que fiz contra a minha vontade. Prometi porque queria ir embora. E se corresse, conseguia comprar um lanche na saída, antes da cantina fechar.
Quando fui buscar a bolsa, a professora perguntou o que houve e eu disse: ela não respeita o meu direito ao silêncio. Não perguntou mais nada, passou a lição e fomos embora.
Depois, ainda fui obrigada a consultar com outra psicóloga. Durante uma hora ela me perguntou:
- O que você procura na minha sala? Parece que você sente falta de alguma coisa.
Silêncio.

Patricia Ortiz

sábado, 8 de dezembro de 2012

Teatro Paiol - Curitiba
As pessoas são frágeis. Os mais frágeis perdem o caráter humano e se tornam fonte de mal aos outros. Acreditam assim, conseguirem alguma imunização. Os conscientes, dessa engrenagem sórdida, surtam. São tratados por aqueles que acham normal que a vida siga desse modo. Mas é esse absurdo que nos destrói.

Ricardo Pozzo
Rua Presidente Faria - Curitiba
Dos jogos de sedução me resta a gentileza, da ânsia o desdém, e das estratégias o tédio. Não posso mentir nem sequer enganar-me, sou o reflexo invisível de minha sombra e não renuncio às minhas fugas secretas nem aos meus incessantes suicídios. Meu ofício é ser Eu e, nesse exercício perigoso, aprendi alguns truques que jamais usarei. Minha solidão é sobre humana, está além do medo ou da dor previsível e por isso amo e por isso eu danço, baby. Por isso eu danço.

Efraim Medina Reyes/ tradução Ricardo Pozzo


De los juegos de seducción me queda la gentileza, del ansia el desdén, de las estrategias el hastío. No puedo mentir y ni siquiera engañarme, soy el reflejo invisible de mi sombra y no renuncio a mis secretas fugas y mis incesantes suicidios. Mi oficio es ser yo y en el peligroso ejercicio de serlo aún más he aprendido algunos trucos que jamás usaré. Mi soledad es sobrehumana, está más allá del miedo o el previsible dolor y por eso amo y por eso bailo, nena. Por eso bailo.

Efraim Medina Reyes

sábado, 24 de novembro de 2012


Pérolas aos Procos

Por que tentais, pois, "alargar" a mente? Requintai-a. 
                                                       Herman Melville

Intelectuais &
artistas
trafegando
entre a
Paula Gomes
& Trajano
qual reunidos
à tripulação
do Pequod,
ávidos ao caçar
leviatãs rosáceos,
lançam
roll mops
na garganta
dos que
desafiam
a histriônica
estética
da Augusti 
Follia
babilônica.

Enquanto eu,
que não posso
agregar-me
o rótulo,
nem de
intelectual,
nem de
artista,
há quarenta
anos
remoendo o
talásso
dos
paralelepípedos
com minha
perna
de marfim
e meu
cachimbo,
estou farto
de tentar
encontrar
Maria
Rosa
entre
Helenas
traiçoeiras.

Quem se
importará com
hecatombes
realizadas em
honra
ao deus
vampiro
do Anhangava,
se a arroba da
carne
frouxa
despenca
com a
variação
do dólar?

Ricardo Pozzo

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Foz. Foto © by Maria Teresa de Arruda

quinta-feira, 15 de novembro de 2012


calhar - como


como jefe um falso amigo, como cocinero nos trens da bessie: um buraco, amore, é tudo que resta. amor aqui se entiende por donut, también conocido por: tu no debes partir. o yo me dano. o así sigue. a canção, entre estômagos, tripas. manos granadas nem pintaram por aqui. os homens se chamavam grão e señor, como sabían abrir una ostra. sobre sus otras artes galleteras mejor calhar, o zumbir com a boca toda a su cara da.

When I eat his donut, all I leave is a hole.
Bessie Smith


Uljana Wolf/  tradução Guilherme Gontijo Flores 



clam - chef

als boss ein falscher freund, als kitchen man in bessies tross: ein loch, love, ist alles, was blieb. liebe hier gemeint als donut, also known as: du not go. or i'll go nuts. or so it goes. die lieder, durch mägen, küchen. klamme hände kamen darin nicht vor. die männer hießen sam, and lord, how they could open clam. von ihren anderen kooky künsten wollen wir lieber schweigen, oder summen, mit zuckrig vollem mund.


Uljana Wolf

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sabará




Quem disse que não somos descendentes diretos dos esquizocarpos com as esquizofíceas?

Evolução pressupõe desenvolvimento progressivo, seja de idéias ou fatos; movimentos regulares e harmônicos; processo ou transformação para algo mais complexo. E ninguém duvida que realmente estamos cada dia mais complexos.
Nossos cinco sentidos, sentidos, alimentam-se cada vez mais de complexas energias eletromagnéticas e baterias devidamente saborosas e atrativamente coloridas, e conservadas com corantes e aditivos. Tudo interconectados num macro-micro-universo tão infinito quanto finito.
Duvido de exames periódicos, mas creio na doença una, divisível e onipresente na saúde.
Reflito, durante os flashes de minhas memórias holográficas, em qual dimensão me encontro e quão quânticamente relativa sou.


Deisi Perin

terça-feira, 13 de novembro de 2012


aos cães de kreisau


ai pequenas matilhas de cães de vila: falsos
rabos patas parcas focinhos sobre a cerca

a rua é sua junto ao pó na orla do asfalto
é sua a noite que ecoa no vale adormecido

cada eco é seu: a repercussão contorcida
do som dos montes do rosnar hierárquico

das ondas ladrantes: primeiro hercúleo então gigan
tesco no ressoar quase só uma galinha sabe:

aqui quem não brada nem baba é tomado
pelo bando em gargantas em chama perde o lugar

feito lobo etc. vocês medem o mundo na baixada
dominam cada estrada cada estranho e a mim –

é sua a minha trilha o meu passo sem compasso
a minha panturrilha
enfim fora da vila


Uljana Wolf/ tradução Guilherme Gontijo Flores


an die kreisauer hunde

o der dorfhunde klein gescheckte schar: schummel
schwänze stummelbeine zähe schnauzen am zaun

euch gehört die straße der staub am asphalt saum
euch die widerhallende nacht im schlafenden tal

jedes echo gehört euch: der zuckende rückstoß
von klang an den hügeln hierarchisches knurren

und bellen in wellen: heraklisch erst dann hünen
haft im abklang fast nur ein hühnchen das weiß:

wer hier nicht laut und geifer gibt den greift sich
die meute in lauffeuer kehlen verliert sich der ort

so mordio etc. vermesst ihr die welt in der senke
beherrscht jeden weg jeden fremden und mich –

euch gehört meine fährte mein tapferes stapfen
euch meine waden
dorfauswärts zuletzt


Uljana Wolf

quinta-feira, 8 de novembro de 2012



Vamos vender a nossa alma?
Se tomaram-na sempre de todos
de nosso povo com suas mortes arbitrárias
por motivos vãos e persistentes.
Vamos vender as nossas almas
é um gesto ameaçador para aqueles resistentes
que são sempre ameaçados, por se juntar com os seus
Vale seguramente manter as posições da alma
pois os vivos não se foram mais vivem sem suas almas
e sem suas identidades negadas.

 Kin Con Chan

terça-feira, 6 de novembro de 2012

oil




 A  filosofia dá intestinos à escrita ou em desatinos
desossam na cripta a palavra precisa?
 Embaçada janela da alma onde  
encontro o tropeço na pedra do erro
jogada a esmo  na palavra viva que sangra .
 O olhar que seco não dança mais.
sem pernas, sem asas nos pés da palavra
 voam correntes. Dentes devoram
os intestinos dos sonhos nas nuvens de sangue
brotam punhais
folhas de entardeceres sobre o arame farpado
dorme a esperança.

Wilson Roberto Nogueira

sábado, 3 de novembro de 2012

Baleia ou Canis et Circenses.


(z)et - (z)oo - (z)u


señor, que estuvímos no zoo, porém estava cerrado. entreter nossos dentes ao ar livre. estudar o longo vocalize para dublar as zebras, porque todo en si mismo es distinto. assim é uma vez, vez outra é zoo. finalmente, cerca a la cerca, descobrimos desesperados lagartos por nós chamados ginger y fred. aparentemente, disse você, por eles o todo no nombrado. para ter saudades de casa, eso suficiente fué.

Uljana Wolf/ tradução Ricardo Pozzo e Gunnar Thiessen; revisão Aída Arrue

mister, we’ve been to the zoo, but it was closed. wir wollten die entblößung unserer zähne trainieren, studieren das stimmhafte sehnen zum beispiel der zebras, weil alles zueinander anders sagt, mal so und mal zoo. zuletzt entdeckten wir, verzagt am zaun, ein echsenset. wir nannten sie ginger und fred. it seems, you said, they never called the whole thing off. das gab uns reichlich stoff für den heimweg.

Uljana Wolf

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O Contestado é Agora! Ocupação Nova Primavera CIC / Sabará


Quanto tempo esteve muda


e cega
atrás do véu, da mordaça,
sem poder sequer sorrir em sua vastidão de céu!
Até que rasgaram o seu luto,
e escapou essa luz
que voava e voava...

Luiz Alberto Crespo/ tradução Guilherme Gontijo Flores



¡Cuánto tiempo estuvo muda

y ciega,
tras el velo, la mordaza,
sin poder siquiera holgarse en su vastedad de cielo!
Hasta que rasgaron su enlutaimento
y se escapó esa luz
que volaba y volaba...

Luiz Alberto Crespo

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Nova Primavera



Passo o bisturi no meio do amor...
Não há mais dor,
Em dois está partido o amor.

Com pinças e mais laminadas destrincho em pedaços o amor,
Vislumbro os pedaços
enquanto o sangue escorre
e o tempo corre.
Para!

O cronômetro agora está(tico):
Razão e o cheiro do formol tomam o espaço.

Entendo o amor,
Não há mais dor.
Sei do amor,
Não há mais ardor.
Não há sangue...não há amor...


Rodrigo Ceccon Pereira

Nova Primavera.O Contestado é Agora.


Grumete


Náufragas
loucas
beijam-me
a boca
sedentas
de vertigem

E meu coração,
guardado no
cárcere
da razão,
nunca possuiu
o vício
da esperteza.

Ricardo Pozzo

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Guarapuava - Pr

A Língua


Encontre eu
te amo nalgum
lugar dos

dentes e
olhos, morda
mas

cuidado pra não
ferir, você quer

tanto tão
pouco. Palavras
dizem tudo.

Eu
te amo
de novo,

e o vazio
pra que
serve? Pra

encher, encher.
Ouvi palavras
e palavras cheias

de buracos,
doendo. A fala
é uma boca.

Robert Creeley/ tradução Guilherme Gontijo Flores

http://escamandro.wordpress.com/

segunda-feira, 10 de setembro de 2012


V [vaso]

um vaso é un vaso é um vaso y é a verdad, parece, para cada palavra tão larga quão ancha. ¿listo? adorno não é um vaso embora o contenha. palavra é como algunas personas llegan a lo que ellas  piensan deva ser um vaso, para deflorá-lo. que falta de profundidad, y sagacidad. adorno, adorno, estoy farto de su aburrido transtorno. você precisa de um amante que iria escrever uma carta para um vaso: cara palavra, você não é um barco.

Uljana Wolf/ tradução Ricardo Pozzo


V [vase]

a vase is a vase is a vase und das gilt, scheints, für jedes wort das tiefer ist als breit. bereit? ornament is not a vase although it comes with one. word is some people come in what they think must be a vase, for they deflower it. what a lack of depth, and wit. ornament, ornament, i’m tired of your bored lament. you need a lover who would write a vase a letter: dear word, you’re not a vessel.


Uljana Wolf

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Estação Tubo - Terminal do Campina do Siqueira - Curitiba

A Cumbuca


Lá em cima, bem em cima, onde o ar quase não existe, onde o vento é apenas uma brisa e as nuvens brincam de ser azul, repousa deus. Seu olhar de divina celestina vagueia e vagabundeia, horas fixa-se no horizonte, horas no amigo ao lado. Nuvens enroladinhas como chumaços de algodão escondem suas orelhas, se é que as tem.
Seu amigo, o anjo descaído, tem os olhos inquietos e talvez pela inquietude sejam assim vermelhos e brilhantes como rubi. Ao contrário de deus, olha com frenesi de um lado a outro. Sua nuvem, tão fofa e macia, difere-se apenas pela altura onde se encontra, um pouco mais abaixo. Seu olhar, além de vermelho, é inquiridor... interrogativo... está sempre com este olheirão para deus, que pouco se dá deste olhar. O anjo descaído há muito desistiu de tentar entabular uma conversa, deus surdo está, desde o sexto dia, quando deu por finito seu labor.
 O Anjo, às vezes cheio de tédio, apóia o queixo na mão, enquanto o cotovelo é sustentado pelo joelho e fica pulando os olhos de uma palavra à outra que vêm saltitando da terra dos homens de boa vontade. São palavras lindas, feias, com amor, com ódio, azuis, vermelhas, coloridas às vezes, com lágrimas, com risos, roídas, inteiras e aos pedaços, bêbadas e lúcidas, miseráveis muitas, esfomeadas um tanto, vêm as chorosas de dor e as de rosa cor, as que vêm rápidas como relâmpago e as que vêm se arrastando como o minuto das horas de dor. Por cima de umas vêm outras, ensimesmadas, separadas, as vezes juntas, tão juntas que parece uma só, aimeuSãoJesusCristinho... O Anjo descaído girou os olhos na órbita, soltou um enorme suspiro, esticou o olhar para deus e nada viu, olha para terra e olhar e pensar é uma coisa só. ¨Nesta cumbuca é que nunca mais vou enfiar minha mão”.


Jacira Fortes Tristão

domingo, 26 de agosto de 2012

Calçadão da Rua XV de Novembro - Curitiba

Dela



ela não se surpreende com o mundo
sua tela não tem mais imagens
suas palavras não fazem mais sentido
seu armário lotado
um comprimido
era essa a sua busca
levantou tapetes
arrastou sofá
derrubou cadeiras
monstros do porão
arrancou telhas
roeu unhas
foi tomar banho
e, eis que por rotina,
ao puxar do ralo da alma
pêlos e cabelos
enxerga, no emaranhado,
a bolinha neón
pula pelada aos saltos
escorrega
não acha pote
e a coisinha escorre,
como se o dedo estivesse embebido em kY
até que por fim, pula
quica, quica, quica
cadê?
achou
pôs um papel branco debaixo,
depois de roçar muito
e, com toda paciência,
deslizou o luminoso para o centro
dobrou bem dobradinho
esperou dias e dias
até que pôs selo!


Vivianne Moureau

sexta-feira, 17 de agosto de 2012


Alvéolos de petit pavê

Um drone
observa-me
por entre
alvéolos
de petit pavê
na cidade
tipo exportação
feita
pra ninguém

E meu irmão,
que
encontra-se
jogado
para fora do
espetáculo:

:saca de
vísceras
instituídas
em alcool,

lamenta
que a vida
é rinha
sem saída;

e a
infância
invisível,
tal qual
o mendigo,

por entre
alvéolos
de petit pavê


Ricardo Pozzo

domingo, 5 de agosto de 2012

Paço da Liberdade - Praça Generoso Marques/ Curitiba

CONVERSA COM O LOCADOR ou o silêncio que antecede a mudança


não me diga asneiras
da conta da luz,
da água,
da geladeira estragada

desligada ainda no primeiro mês do contrato
quando descobri que desligada
a diferença em kilowatts resultava em 50 reais

e a bicicleta com o guidon quebrado
é fruto da loucura do próprio cavalo
entediado com os dias de chuva,
e os males da ferrugem

e há dias a história de que sairá um mercado na frente de casa
onde antes era uma igreja,
a ilusão do pão quente atravessando a rua
ou da cerveja gelada, num momento súbito
foi-se embora quando faltou o dinheiro do aluguel

e o animal, antes extinto, em instinto se manifestou na falta

mas agora, seu locador,
não transforme seu locatário num otário,
deixe-me ao menos sair dessa com um ar de personagem pícaro...


Rafael Walter/ inverno 2011

domingo, 29 de julho de 2012

Sujeito à Multa


No princípio era o medo


No princípio era o medo
Então criou-se a máscara
e foi bom.

A seguir, mudaram o foco
e foi suficiente.

Depois vestimos a fantasia
e coube.

Daí em diante confundiu-se tudo
E não se distingue  mais
O que é Treva, o que é Luz.

Quem rasteja, quem voa.
Quem pensa de quem pensa que pensa.

A tecnologia renova e evolui
A vestimenta, a ilusão
porém, não se aproxima do importante,
Continuamos em cavernas.

Solitárias e escuras mentes
Onde no princípio, era o medo.


Deisi Perin

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Ação nas ruas de São Paulo com crianças e adolescentes negros/ AfroPress


[...]o espelho é a prisão profunda
de que somos vigias e presos,

condenados e carcereiros.
e no entanto o homem

é observado, triste alimária
de si mesmo. e no entanto

milhões de olhos o observam
atrás deste – de todos – os espelhos.[...]

trecho de: o espelho © Rodrigo Madeira, publicado no livro pássaro ruim, 2009

terça-feira, 24 de julho de 2012


se considerássemos –


se considerássemos o que podemos ver –
as máquinas nos enlouquecendo,
amantes por fim odiando;
este peixe no mercado
olhando fixo pra dentro de nossas mentes;
flores apodrecendo, moscas presas na teia;
tumultos, rugidos de leões enjaulados,
palhaços apaixonados por notas de dinheiro,
nações movendo pessoas como peões;
ladrões à luz do dia da beleza
noturna de esposas e vinhos;
as cadeias lotadas,
os desempregados habituais,
a grama morrendo, fogos baratos;
homens velhos o suficiente para amar a sepultura.

Estas coisas, e outras, em essência
mostram a vida girando sobre um eixo podre.

Mas eles nos deixaram um pouco de música
e um espetáculo estimulante na esquina,
uma dose de uísque, uma gravata azul,
um pequeno livro de poemas de Rimbaud,
um cavalo correndo como se o diabo estivesse
torcendo seu rabo
sobre a grama e gritando, e então,
o amor novamente
como um bonde dobrando a esquina
bem na hora,
a cidade esperando,
o vinho e as flores,
a água caminhando sobre o lago
e verão e inverno e verão e verão
e inverno novamente.


Charles Bukowski/ tradução: Fernando Koproski 

domingo, 22 de julho de 2012

Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Azul
Carnaval de rua de Curitiba - 2011

1

Uma selva de lâminas
acariciava os arbustos
que pequenos dilaceravam muitos
era de se espantar o tamanho dos sustos
que coléricos difamavam os outros
nas entrelinhas de um arvoredo
se via escondida a pequenez atroz
que consumia a grandeza de poucos
era notório o calcular de preces graúdas
que afastariam os desfalques e fobias
pra que gestos servissem de alento
era preciso mais que contentamento
era preciso que a proteção dos cômicos
limpasse o humor de seus assoalhos
e não pisasse no gramado da seriedade
era preciso nostalgia em forma de criança
pra que na infância o amor restituísse a saudade
nos vínculos que unem veículos
estão unidas as lembranças motoras
ninguém esquece de estacionar mais tarde
uma guerra de seda tremula
não espanta dos olhos a leveza
e não deixa de fazer voar a libélula
que esbanja em seu pouso a certeza
que seremos felizes pra sempre
uma serra que corta a cerca
nunca mais prenderá infortúnios
e não salgará o mel das abelhas
pra que mude de gosto a tristeza
que um dia se transformará
em luxúria previa da alegria
pra que num hibernar de luzes
nunca se apague a euforia
é sabedoria absoluta se embrenhar em via
espantar as ruas da agonia
e tilintar pelas mais belas avenidas
uma trégua as campinas
que verdes não amadurecem seus conselhos
e se entregam ao rústico patrimônio das intrigas
devemos espelhar nossos reflexos na montanha
e avistar a serra que se condensa diante das maravilhas

2

Em meio à sombras delirantes
a carniça debruçava suas lastimas
a cabeça debruçava ameaças
e o ombro dissecava-se nas matas
era lisonjeiro o açoitar de corpos
ruminando a esmo
e as incógnitas do tempo
diziam que o amor estava em pedaços
ninguém morria de fato nos campos
ninguém entoava um só pranto
e chorava órbitas e desenganos
era de derramar vitórias
cada gota ininterrupta de fracasso
e a derrota perpetuava nos corações
onde o homem passava horas a fio
num compasso intrigante de idéias
e os tecidos rígidos da lisonja
interrompiam as mortes súbitas
quando havia ainda ar para respirar
os trajetos emoldurados da ira
ofuscavam o sol nascente
e declinavam o poente
eram lindas as cóleras do mundo
as feras gananciosas do lirismo
onde os poetas sanavam dores
e declamavam seus amores
troféus do exílio coletivo
e dos pecados aflitivos
nas selvas intrínsecas do desperdício
haviam ainda almas variando sonhos
catalogando adornos
desperdiçando vidas
e as nuances dos mortos eram obras
intermináveis que não cessavam
formas tetraplégicas de consumo
arquétipos de insensatez e loucura
em meio à câimbras e avarezas
o monstro da fartura devorava decência
e construía uma sociedade arrogante
formada por cartas na manga
trapaça e um punhado de avareza
no fim tudo era incerto e colibri
voando perto da tristeza


Antonio Silva

domingo, 15 de julho de 2012


O Dia


Eu sonho sem ver os sonhos que tenho.
Que angustia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa, na noite que fica.
Fernando Pessoa

Noite, por quem adormeceste?
Viste a lua em suas fases,
Pulsando iluminada ou,
Tornando-te sombria?

Percebeste quantos sóis tornastes visíveis,
Enquanto apenas um a faz sucumbir,
Por fazer-se claro dia?

O que surgiu pela vidraça
Sob o encanto que se parte?
Partes dos meus sonhos
Para a realidade.

Angela Gomes

terça-feira, 10 de julho de 2012

Calçadão da XV - Curitiba

Ninguém Perde Sempre


tive um tio chamado Sol
que era um fracasso completo e
quase todo mundo comentava que ele deveria
ter partido para o vaudeville talvez pois meu Tio Sol podia
cantar McCann He Was A Diver na noite de natal como o Diabo o
que pode ou não explicar o fato de meu Tio

Sol haver se metido na possivelmente mais imperdoável
de todas para usar uma frase pomposa
extravagâncias que é ou para aprender
a fazer criações e cultivos e seja
desnecessariamente acrescentado

a fazenda de meu Tio Sol
fracassou porque as galinhas
comeram as verduras então
meu Tio Sol teve uma
fazenda de galinhas até que
os gambás comessem as galinhas quando

meu Tio Sol
teve uma fazenda de gambás mas
os gambás pegaram gripe e
morreram então
meu Tio Sol imitou os
gambás de uma sutil maneira

ou porque se afogou na cisterna
mas alguém que havia dado ao meu Tio Sol uma Vitrola
Victor e discos enquanto ele era vivo deu-lhe de presente
à auspiciosa ocasião de seu falecimento um
delicioso para não dizer esplêndido funeral com
meninos grandes de luvas negras e flores e tudo mais e

eu lembro que todos choramos como o Missouri
quando o caixão de meu Tio Sol súbito se moveu pois
alguém apertou um botão
(e para baixo se foi
meu tio
Sol

e começou uma fazenda de vermes)


e. e. cummings/ tradução Rodrigo Madeira

segunda-feira, 2 de julho de 2012


princípio da inércia em dias de chuva



e penso que tudo faz parte porque penso,
o céu a grama, os interlocurores
desta conversa adversa, e é quando
não existe porquê, só o tráfego trôfego
adestrado pelas vias, que insistem
na paisagem, mesmo sem destino.

que tudo resiste, e nada se sabe,
só a chuva constante e o vento
─ há quem diga destino, embrulho
do estômago e intestino

nada vezes nada até a alvorada
ilusão pensar que nada é nada
e me digas, é a poesia que
te mantém vivo, ou duvidas disso?

é perigoso levantar-se desta cama
porque o mundo pode estar em chamas
e o céu caindo aos pedaços
e a terra a estourar em estilhaços
a explodir a realidade em nossa cara


Rafael Walter

sábado, 30 de junho de 2012

Richard Burton reads S.T. Coleridge's 'The Rime of the ancient Mariner'

Richard Burton - the mariner
Robert Hardy - the wedding guest
John Neville - narrator

Darker Room by Michael Brook

poem by Dylan Thomas
Recitation: Richard Burton

quinta-feira, 28 de junho de 2012



Erudicídio


São nestas escolas
de sucata
infestadas por traças
e parasitas
que as nossas crianças
se deseducam
e, muito cedo, aprendem
que em terra de rei iletrado
estudar é crime
hediondo

E o que resta é a resignação
do educador
com salário de fome
que tão logo aprende
que erudição
não enche barriga;
e também a desesperança
do estudante
cuja vida ensina
o quão difícil
é preencher a mente
de barriga vazia

E para as gerações vindouras
o que fica
é a consagração
da estupidez:
a tirania da mediocridade
onde as pessoas
são niveladas por baixo
E o pior
não é a prepotência ingênua
do analfabeto funcional
mas o silêncio cínico
e (por que não?) criminosos
dos que sabem qualquer coisa
mas disseminam
impunemente
a ignorância.

E a farda
da escola pública
se transforma
para uma geração de futuro(s
excluídos)
um fardo.



Thomaz Ramalho; Maputo. setembro de 2008

sábado, 23 de junho de 2012

terça-feira, 19 de junho de 2012

Jardim Itaqui - Região Metropolitana de Curitiba

sábado, 16 de junho de 2012

Verve



  Estou incógnito
por sob os pés sutis da sombra
cujos pés nessa clara servidão colam-se aos meus

  Estou insólito
em meio às fés em mil deuses
nos quais tem ainda outras fés meu próprio deus

  Estou finito
sobre rés do chão fora dos dias
aos quais sempre volto em rés que julgo jubileus

  Estou aflito
dentro das sés rezando em mim
que é nessas sés que confesso crer mais em ateus

  Estou escrito
entre o quem és tu e teu ler-me
que és lido diário e nos somando somos mais eus.


Davi Araújo


DAVI ARAÚJO (São Paulo, 1979). Poeta, ficcionista e tradutor. Autor dos blogs “Não Fique São” e “Transatravés”, tem poemas publicados em TriploV, Pó&Teias, Diversos Afins e Mallarmagens. Traduziu os ensaios “Natureza”, de Emerson, e “Caminhada”, de Thoreau, pela editora Dracaena. Seu próximo livro será “Ficções paralelas & Visões para lê-las”, coletânea de prosa experimental. Atualmente, conclui dois livros de poemas, continuações da trilogia iniciada com “Livro Ruído” (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal.