quarta-feira, 17 de junho de 2015

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Moira

   O olhar vidrado no risco trincado do vidro da janela, risco trincado do vidro que corria até a parede confluindo na rachadura dela, rachadura da parede que seguia até o chão e continuava no risco da madeira do assoalho , risco da madeira do assoalho que subia pelo pé riscado da mesa , pé riscado da mesa que  encontrava o fio da toalha de crochet desfiada, fio desfiado da toalha de crochet que encontrava um filete vermelho no tampo da mesa, filete vermelho de onde surgia um novo encontro, encontro com a linha da mão - a chamada do destino - linha que estava quase escondida pelo fio da navalha .

Susan Blum
Novelos Nada Exemplares.Londrina , Pr: Amplexo Editora, 2010. p 79

Irene inteligente

Para os poetas M.B.

Irene não pede licença, pois sabe de seus direitos.
Irene não xinga e entra à força, pois sabe de seus direitos.
Irene preta, Irene boa, nem sempre de bom humor, Irene humana.
Irene estudou, Irene conhece as leis 9459/97  e  7716/89.
Irene ...Apenas uma mulher querendo entrar...


Susan Blum
Novelos Nada Exemplares .Londrina , Pr: Amplexo Editora, 2010. p 107

Marés Curitibanas



Endomingado no pântano das saudades daquele sol senegalesco, desfolhando, empilhando essências de volúpias e arrebatamentos. Nada como o verão para tomar o vinho das ânforas, fêmeas mais suculentas e lânguidos seus movimentos, convidativos seus olhares. Sol queimando corpos e refrescando de suor, revelando contornos velados em seda sorridente de transparências, vontades.

Janela suada imagem de sonho, abre o oceano, ela corre e pára, olha com olhos de oceano. Está como sempre esteve, Eva no Paraíso, vestida de suor e sorriso. Atravessa a cidade a pé, a pé nos caminhos pluviais, rios-artérias-urbanas, afogadas, afogadas de prazer sereia, de uma sereia curitibana.

Tu és a benção e o perdão deste clima niñes de monção atrapalhado, fala o bengali brasileiro que ama a água, como ama o amor que o pensamento leva, olhando aquela lótus que conduz ao Kama Sutra. Vapores enevoados de sonho despertado no coaxar de um sapo infeliz, perdido no charco ao desmaiar da noite preguiçosa, que não quer chegar.

E há quem prefira os becos escuros, dos excrementos da cidade, seu pus e náusea, suas secreções e odores de cloaca e morgue macróbia, onde a brisa faz a curva para não parar diante de um muro de farrapos e arames, hera e pesadelo.

A Curitiba do caminhante não é um esgoto a céu aberto, onde famílias-gabirus se apinham em cavernas de papelão, onde a vida vale a viagem de uma pedra.

Sonha os marés e arrecifes da bela cachopa molhada. Não a cotidiana realidade que sangra todos os dias de lamento a mãe que perdera o filho em um incêndio, porque tinha que trabalhar para alimentá-lo e não tinha com quem deixá-lo, deixou nas mãos de Deus que preferiu jogar dados na areia humana.

Que futilidade deitar emoções – vivas pequenas histórias a cada sutil movimento, se o Tsunami arrasta da terra bibliotecas vivas contidas nas cores, vozes, cheiros e temperos de povos inteiros retornando do inferno marinho só cinzas e cascas, cinzas junto aos restos dos condenados a sobreviverem aos seus entes queridos.
Um camaleão agarra com a língua uma libélula.

A cidade continua sendo construída e desconstruída no caleidoscópio da memória de um sonho, no trôpego caminhar de alguém que pensa estar acordado, caindo e caindo como em todas as manhãs, mergulhando no abismo.

Qual a finalidade da vida, além da dor, da mãe urrando sob o cadáver do filho ou é a completa ausência de si, como aquela que defeca a prole na privada. Um lapso, uma fronteira de papel separando instinto de razão, natural e social, a dor de uma só é mais profunda, mais próxima do que açúcares diluídos na água, estatísticas, meros números, alguém vê atrás dos números, rostos, sentimentos, histórias?

Continua em Curitiba, caminhando, o sapato já se dissolveu em mais uma lagoa entre a calçada e a rua-rio, em uma cidade que foi projetada para a civilização do automóvel, mesmo havendo eficiente rede de transporte urbano, lá está a horda de carros com uma única pessoa, afinal o carro representa status e poder sobre os sem-automóveis, poder de matá-los como moscas ou a eles próprios nos rachas. A propósito dependendo da carruagem pode-se pescar cada peixe-gata!

E mais um banho de graça no passar do rodante.

O catador de papel, homem-cavalo, puxa o carrinho, dentro uma criança no meio do lixo reciclável, ela segura uns vira-latas, nada mais Chapliniano, nada mais ilustrativo.

A chuva para, e pensa. A calmaria sem força, desfalecida dorme e uma parcela de si morre um pouco, sexo rápido da natureza com a cidade. Tsunami foi o sexo de uma ninfomaníaca com um estuprador, o homem estuprou a natureza e a natureza o matou de tanto fazer amor. A água é nosso berço primal, o líquido amniótico é o nosso quente mar onde os humores do afeto nos chegarem vibrações acariciantes ou em ondas revoltas dependendo da mãe terra onde estamos germinando. Assim é entre a Lua e os mares, do oceano e de nossas formosas fêmeas.
Chega que estou ficando diabético.
Para comer uma portuguesa lá na esquina o caminhante pára, e o pizzaiolo sem precisar que o freguês solicite, já sabe e diz: “- É pra já doutor em dez minutos a pizza portuguesa com borda recheada de catupiry estará pronta”. Ouve, porque ouvir não pede licença, a voz das ruas, uma esganiçada, outra, que exigiu toneladas de nicotina para produzir aquela voz cancerosa que causa arrepios nas cordas da harpa sensível de Grisette.

Nada como uma catástrofe colossal para que se extraia do ser humano o que ele tem de melhor, e de pior, praticamente toda a grande potência se mobilizaram para levantar recursos aos países afetados pelo “Tsunamis”, os artistas, o Schumacher endinheirado, os povos do planeta estão fazendo doações até o Timor, que é um país pobre doou o que não tinha, proporcionalmente doou mais do que os sovinas EUA do Bush, que prefere gastar para destruir, matar e saquear, deixe quieto, os americanos verão cortes na previdência, ensino público mas continuaram votando na quadrilha dele, porque quem elege nos EUA é o capital, que comanda a economia dos estados mais poderosos, com mais votos no colégio eleitoral deles, nos pequenos estados ele também tem voto, lá também tem os grotões como aqui, com mentalidade pré era da razão. Os Estados Unidos percebeu que perderia a corrida para japoneses, alemães e britânicos o quanto não lucrariam reconstruindo os resorts, abrindo financiamentos e de quebra puxando o tapete da influência chinesa, cada vez mais percebida como superpotência emergente, mas vieram os caipiras canadenses e atravessaram o samba com uma ideia estapafúrdia, de perdão da divida dos países como Sri-Lanka, Índia, Indonésia, Tailândia, Maldivas, Seychelles. De vagar com o andor, os banqueiros achariam esbanjamento de bondade, uma moratória de cinco anos, e claro haverá compensações para os tubarões e não só aos cevados tubarões do Índico, àqueles de Nova Iorque, Londres, Zurich.

Banqueiros não fazem caridade e o Tio Sam se apressou em declarar que não haverá um Plano Marshall para a região (nem um Plano Colombo como houve para o Japão). O Brasil mostrou presença e a ponte aérea da FAB levou o coração do nosso povo fraterno para minorar os sofrimentos dos flagelados, nossos irmãos asiáticos, doando remédios, alimentos não perecíveis, água potável, roupas e é claro de contrabando algumas urnas para os votos dos sul-asiáticos para as pretensões do Brasil ao assento no Conselho de Segurança da Onu, o que supostamente nos conferiria um status de potencia com direito de vos e vez através do veto. Pena que não tínhamos aviões suficientes para levar os mantimentos, isso requereria algo além do discurso, para sermos uma potência precisamos nos impor também com o que temos para não pagarmos mico. Tomara que sobre uma oportunidade de negócios para a Petrobrás, Odebrecht, Gerdau.
O vizinho da mesa não só tem de podre o hálito, cuja fumaça chega ate aqui, invisível e nauseante, mas o quanto de falso há no que disse?

Finalmente a gostosa chega e dá-lhe Gallo. E a noite chega com um choro soluçado de uma garotinha de olhos verdes afogados em lágrimas, com a mão suplicando uma moeda, o desconhecido deu um pedaço de pizza para ela e embrulhou outro em um guardanapo para que ela o levasse para casa, ela coçou o nariz deu um sorriso e foi embora, apareceu um guri e ela deu o outro pedaço para ele.

Pensou. Chaplin outra vez, a cidade tem sua canção, sua poesia basta ter olhos para ver, pena que haja tanto tempo escasso em pressas viciantes de escravos voluntários. Pressa que consome uma vida objetivada em coisa, em máquina o homem, peça de uma engrenagem sem finalidade, estéril semeadura de clônica mediocridade cotidiana.

Falou o filósofo, do que uma vodka não é capaz. O álcool abre a porteira para a boiada do imaginado, do irrefreado adquirir substância no real sem fronteiras dos atos valentes na verborragia cachoeira de grunhidos gritados como orquestra de um homem só, desafinado e desafiador desalinho e abandono de si como aquela garrafa voando ou aquele que dorme em meio aos produtos de seus intestinos extrovertidos a cantar. 

Enfrentar sóbria a vida requer fibra e coragem o que não é fácil. A vida ela própria age como uma mãe bêbada ou um pai, progenitor que violenta a filha como se quisesse fazer-lhe um carinho mas a marca para o resto da vida.

 O caminhante com seus passos tropeças em suas próprias pegadas, se perde e perde-se  nas sendas, nas clareiras enganosas da floresta que pensou transpor, segue intuindo o caminho na confiança cega de um rio, que mais uns metros dentro da escuridão seca, secando a esperança de sair dali. Dorme na madrugada eterna nem um pio de coruja ou uivar de lobos, nada além do silêncio. Está morto, a morte é o vazio onde ele permanece na escuridão. Será o inferno ou ele estará no sonho de alguém, estará ele sonhando?

Caindo, caindo a queda sem fim, escuridão, onde estará, um eco seco na garganta, angustias, uma súplica ao sorriso da sorte, de encontrar enfim o fundo, o fim, que seja agora, mas apenas a vertigem eterna dos condenados, pesadelo, qual é a saída, e, sair do que, do vazio.

- Você já acordou com a sensação de se estar caindo? Fugindo do inferno de existir, voando por cima de si olhando a carcaça apodrecer.


Wilson Roberto Nogueira



Muros II



Países abandonados canibalizam suas populações expurgando cada fibra humana, empilhando em pesadelo seus restos transformados em diamantes, urânio, ouro, petróleo, mais além de seus rins, fígados pulmões e sangue, o sangue verde de sua pujante riqueza tropical, da biblioteca contida em suas raízes culturais, na tradição de seus autóctones patenteados, que jamais terão suas moléstias curadas em prol da saúde e a prosperidade das fortalezas setentrionais.

Aos pés dos muros, fugitivos da angústia, expropriados de seus órgãos, de suas famílias famélicas se arremessam à luz esfumaçada da França, Espanha, Itália e são devidamente expelidos após serem usados. Caem aos montes, às moscas da carniça de seus sonhos, a desilusão, o sonho de fazer a América, que quer braços e não bocas sobram presídios cinco estrelas para aqueles que não terão vaga nesse arame farpado estendido no alto dos arranha-céus onde as feras do desemprego fazem suas vítimas.

Muros onde cada tijolo é um auto-engano da boa sociedade burguesa, hipócrita, purgando suas consciências, dando esmolas, atuando no teatro paternalista de medidas paliativas, de politiqueiros de plantão, na cordialidade estudada de preconceitos velados, manifestos no vidro de seu caviar, se espraiando dos incluídos nas calçadas, ignorando o direito de ir e vir da massa amorfa e pútrida das não pessoas.
A elite nos países desmoronando tal o peso de seus muros sociais, econômicos, psíquicos.

Os construtores das barragens para conter a barbárie não se veem bárbaros, sua autofagia virótica, porque anular no outro o resultado do flagelo que provocam, escondem no sótão o quadro purulento de seus excessos, o poder produzido através do acúmulo pela expropriação, pela concentração das riquezas a partir da contração de oportunidades, sem olhos para ver a luta ciclópica, caminham para o suicídio, atentam contra o seu próprio status e privilégios no arrancar da esperança da massa, tão estupefata em suas delícias, tão delirantes em suas obras, não veem se aproximar à queda de suas fortalezas, de seus muros e o fim da transfusão de sangue fétido que alimenta sua relação com o Estado. Afora seu protetor, o Estado, não podem se proteger da vingança das não-pessoas, das crianças de olhares sem luz.


Wilson Roberto Nogueira



Muros I


Todos os dias saltam do alto das muralhas do medo, restos de desespero, fantasmas sem grilhões. Feridas rasgadas, sulcando de quente sangue a pele negra, herança do sofrimento no arame farpado da opressão. Os cães do ódio ladram e seus dentes cravam na carne suja e apodrecida da escravidão.
A afluente aristocracia – dos eupátridas pós-modernos do alto de seus palacetes – quer perpetuar seu fausto enfastiado, com máquinas que não comam, não bebam e não se reproduzam, precisam de criados invisíveis que não ofendam com sua presença.

Os muros são fronteiras que protegem vós mesmos nos outros, a vossa humanidade, a obrigação de enxergar o contraste no espelho da exclusão. Denuncia da consequência da ânsia de acumular necessidades supérfluas, carência de necessidades reais da multidão zumbi, do lumpen.

Os muros correspondem ao medo de se verem despojados de suas histórias, construídas dos espólios da guerra fratricida entre a cria mais forte e a mais fraca da loba do sistema.

O abismo se agiganta, as trevas abatem as crias esquálidas do proletariado no esgoto da exclusão, embrutecendo suas vontades na voracidade da vingança, cristalizada no crime, incendiada nos entorpecentes, perdidas na sarjeta.

Os muros são construídos por todos que os exteriorizam na força repressiva do representante autoeleito , o Estado, forte diante dos fracos e fraco diante dos fortes.

É quando o subúrbio se levanta e o morro escorre para a calçada. O subúrbio clama por empregos e o morro por esperança na forma de pão e dignidade.

Cada tijolo ensanguentado, por quem é colocado?

Só o dólar e o pó atravessam os muros, se globalizam. As pessoas estão confinadas em seus pesadelos de consumo, chafurdando no lodo que transformaram as pátrias violentadas.
Caminham, não, se arrastam nas sombras, atravessam desertos guiados por coiotes, são espremidas em contêineres, vagam em barcos, escorraçados em sua esperança, lastros de fantasia, patologia. O não-lugar para as não-pessoas.

A estátua abre os braços, generosa aos miseráveis do mundo inteiro, generosidade de pedra, cláusula que esqueceram de gravar em seu pedestal de bondade:

"desde que tenham dinheiro ou voltem para suas cloacas do terceiro mundo após o expediente, pobreza terrorista que carregam em seus corpos...".

Muros represam o mar pútrido da pobreza, da violência, que agride e alimenta o revide. O muro que engole o berço.

A globalização dos muros erigidos, verdadeiras homenagens ao Apartheid. Os muros ideológicos derrubados a marretadas em Berlim não permitiram aos embriagados ver o quão inebriados de ideologia estavam. Outros muros foram levantados: na Coréia do Norte, em Israel ou na fronteira dos E.U.A. com o México; outros muros construídos com o imperativo de ocultar a agressiva presença do outro, o estrangeiro, que quer um lugar à mesa, um lugar ao sol.

Serviçais sentados à mesa dos patrões com seus modos de sarjeta, com odores fétidos e roupas sujas, restos devorados por suas próprias mães.


Wilson Roberto Nogueira 12/04/06

terça-feira, 2 de junho de 2015

F E R N A N D O - JB



Ele tem carteira de identidade
como tantos
ele tem CPF
com muitos números
possui carteira profissional
e muitas profissões
endereço fixo
de papelão
filhos com certidão
e uma companheira
para a vida inteira.
na linguagem dos governos
é um cidadão.
Fernando chegou chorando
olhos verdes congestionados
magro, barba por fazer
pedindo trabalho para viver.
Trazia a angústia da fome
dos filhos
que deixará sem comer
falava da falta de leite
falava de não roubar
o que lhe tinham roubado
desculpava-se por ter chorado
queria limpar banheiro
dizia: qualquer coisa posso fazer
minha sogra me chamou
mas nem ela tinha o que comer.
Fome de trabalho
de respeito
de direitos
Dor de abandono
de vergonha
de incompreensão.
Agonia, angústia e ira
remoem seu peito
em conflito chora.
o choro do
desencanto.
Não percebe Fernando
o peso das correntes
do sistema de opressão
que lhe nega o trabalho
quer lhe tira o leite
que lhe rouba o pão.
No rolar da lágrima
o grito da poesia:
"Prendam o ladrões da cidadania!!!"
Cidade, cimento, falta de emprego
que sofrimento.
Como dói estar só na grande cidade.
NÃO!!! Não quero roubar.
Só peço um pouco de leite
para meus filhos alimentar.
Roubaram-me tudo, menos
a dignidade.
Ainda restam-me lágrimas
e muita sinceridade.
Aqueles que não me compreendem
Que nem o tentem.
"Só compreende a dor da fome, quem a sente"


João Bello
fantasma que sombra faz seu presente coma passado. nas mãos apertadas nós avivam tortura. preso arrasta cego de amarras ludibriado julgar. deita comigo vestindo orgia em vasto pesar...


Flavia D'Angelo. In trapézio sem rede

Cara, tá faltando inspiração?


É que tu não foi no fundo ainda.
Lá na carne, no nervo exposto,
no tutano do osso.
Lá onde a esbórnia vira esgoto
e todo herói vira o seu oposto.
Tá faltando transcendência?
É que tu não foi no fundo ainda
desta nossa miserável existência.
E só depois do último círculo do inferno
que se pode aspirar ao céu
(ou a um purgatório decente que seja).
E a fé, amigo, é um dom
que só se concede aos desesperados.
Então, vai, mergulha fundo
no fundo sem fundo do poço,
do fosso, do lodo, do oco do universo.
Morde a carne e rói o osso.
E só depois volte aqui, cara, e faça um verso.

Otto Leopoldo Winck