sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ser

Crânio e face.

Corpo e alma.

Protegidos por ossos e cinto de segurança
Da cintura escapular até a pélvica.

Braços, mãos e tórax
sustentados por coxas, pernas e pés.

Unidos por articulações e cartilagens,
seguindo o fluxo das sinapses
e das substâncias branca e cinzenta.

Humano e desumano.

Anjo e demônio,
contradições de uma matéria em decomposição.

Deisi Perin

Uma Criança Arde nos Campos de Ñu Guassu

Há uma criança
carbonizada;

o fogo evaporou
a lágrima.

Ela tem não só o
sangue guaraní;

é negra, polaca,
jogada por aí.

Quem verá o vento balançar a macega?
Ou crispar desconexa língua de fogo?

Vulto amontoado,
pequeno;

lentamente
alimentado com veneno,

[serve]

a generais covardes,
inatingíveis

e seus heteromorfos
dirigíveis

Quem verá o vento balançar a macega?
Ou crispar desconexa língua de fogo?

Em estreitas veias da urbe
a banhar-se em chorume,

o cadáver carbonizado
sob cobertor acinzentado.

Era aqui, era lá?
A República do Guairá?

Quem verá o vento balançar a macega?
Ou crispar desconexa língua de fogo?


Ricardo Pozzo

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

foto by Filipe R. Silva
foto by Angela Gomes

Lembrete a um moribundo

Se você quer pensar na dor de morrer, lembra do teu corpo.
O corpo é que completa a morte.
Só no mundo ele foge do vazio,
do próprio corpo.

Mas se é pela vida que você teme, lembra dos teus sentimentos.
Os sentimentos não completam nada.

A morte esvazia. A vida não engana.
Os sentimentos não cabem em poemas.

Nils Skare
foto by Angela Gomes

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Era uma Vida

(Escrito na mesma hora em que meu pai corria para outra vida )


Era uma vida
que corria para o mar
Era uma vida
sem hora marcada
Era uma vida
feita de terra, ar e areia
Era uma vida
onde havia de tudo
emoções e sentimentos
sombras e luzes
Flutuavam vontades
Lá e cá
Um desejo não fala com o outro
não se olham
e confundem a vida
um acredita
outro desmente
um é atento
outro, aventura
um é lenha
outro, fogueira
um é sol
outro, lua
um cochila
outro, desperta.

Qual aparece ao sol ?
Qual prefere a lua ?

Era uma vida
com muitos desejos.

Deisi Perin
(Proyecto Cultural Sur-Brasil.vol7. Outubro; 2008 )

Refletindo silêncio

Para longe de mim
Equilibrando-me
sobre o fio esticado
entre sonho e juízo
prestes a estatelar-me
na rudeza dos fatos
prestes a alçar vôo
rumo a pouso impreciso

Para longe de mim
A ressonância da tua voz
provoca tremores
muda o curso da libido
no murmúrio raso
do discurso fluido
que escorre
para minhas profundezas

Para longe de mim
Que a figura
debruçada na janela irreal
seja a imagem colhida
pela menina em meus olhos
a ostentar indiferença

Estrela longínqua
refletindo silêncio
no mar

Iriene Borges

terça-feira, 28 de outubro de 2008

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Um Dia depois de Antes

Acendo uma vela,
as paredes dançam,

na meia-luz,
as lembranças:

o trânsito escondeu-se todo
na ambulância do meu desespero

que rodou, rodou num viaduto

irresoluto e rezou luto

na veia,
glicose, dipirona e antis

na seringa cheia

nada,
nada de imediato se absorve

Ivone F. Santos


http://ivonefs.blogspot.com/

domingo, 26 de outubro de 2008

Sobre os Modos de Madamme Lucille

Madame Lucille, composta por matéria brilhosa, principalmente boca e olhos, arrasta pelo imundo chão de um bar de quinta seu casaco de veludo e plumas provenientes de gansos negros. Gargalhadas entorpecidas são invocadas de seu âmago lubrificado com gás hélio, desfila entre os dedos da mão direita uma piteira dourada do século passado ao mesmo tempo em que sua mão esquerda gira um copo de Teacher's. Mulher segura essa madame Lucille para limpar os dentes com a lingua desse jeito, como quem acabou de calar o apetite. Caminha com seus sapatos de meretriz aposentada sobre as poças de cerveja e mijo largadas pelos homens despreocupados. Madame Lucille, elegantemente fora de contexto, dança um cabaret de Toulouse enquanto ao fundo toca um samba de raiz.

Camila Vardarac

http://vaga-lumens.blogspot.com/

Quando a Gata Comeu a Minha Lingua


Preso no peito está o melhor que posso oferecer. E na garganta as palavras que teimo em não dizer. Você veio e até sorriu. Eu fiquei ali. Estático. Preso num canto do bar. Cigarro e copo na mão. Olhos tristes de quem não dorme e não come direito. Olhos de quem não ama. Um peso nos ombros que me afunda mais a cada dia. Uma mentira. Ou um segredo? Eu não conto. Nem canto. Pranto. Tanto. Quase todo dia no escuro do meu quarto ou no eco do meu banheiro. Lágrimas que rasgam o peito. E o lugar onde o meu melhor está guardado vai apodrecendo... dia após dia. Lágrima após lágrima. E, enquanto o meu mundo desaba, eu permaneço ali. No canto daquele mesmo bar.
Wilton Isquierdo

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Jurei-me no espaço
da casa de barro
furtado da terra.


Rubra vergonha
em face menina
de outro destino
ao seio fitar-me.

Loriel S Santos

domingo, 19 de outubro de 2008

Dia 23/10 - Bisbilhoteca - 19 horas


O Sapato Falador

Numa insólita enchente, o encantamento acontece: sapatos que falam estendem as mãos (ou seriam os pés?) para um menino flagelado. Então, solidão e solidariedade, desespero e esperança, Sul e Norte, esquerdo e direito, individual e coletivo, real e imaginário, como se fossem antigos amigos, promovem a comunhão dos opostos e o clarão de um olhar renovado. E, para completar, ternura e poesia também enlaçam as mãos e movimentam sentidos e sentimentos, numa cantiga final.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Foto by Angela Gomes

Síndrome do Desencantamento

"...que agora que eu tô nessa situação eu sei, o único amor que existe é o amor de mãe"
Lindemberg Alves, 22

Olhos tristes, naquele rosto jovem. Não adiantava querer explicar ou tentar salvar qualquer espécie de esperança no futuro. Numa relação a dois, o amor não é tudo.

Ele, com aquela cara de cão sem dono, imerso em suas incertezas perante o mundo, mal chegava a percebê-la, enquanto ela, fingia proteger-se em seus braços ao notar que ele exibia um certo orgulho de envolvê-la, julgando-se macho, em inspiração adolescente, sutil e trágico, desesperançado e crente.
Ricardo Pozzo

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Praça Zacarias

sábado, 11 de outubro de 2008


estencil de Jaime Vasconcelos (ou Jãime Vaisshconceluishzz)

Aphaville e a Cidade Desconhecida

Estava decidido. Louise se mudaria para longe de Alphaville. E de fato há tempos vinha se mudando aos poucos. Não podia mais com aquela gente que lhe exigia tanto. Tudo ali requeria uma geometria exata e tudo o que fazia parecia, aos olhos de todos, algo tão diferente do esperado. Olhavam-na assim como se a algo raro de tão incompreensível e sua produção espiralada ou circular eram objetos quase não identificados pelas convenções. Não podia repetir quaisquer de seus atos, pois nada se adaptava ao formato local, tendo ela sempre que criar uma nova ação na esperança de se fazer entender. Sentia-se então quase estrangeira, mas lembrava-se de um lugar tão diferente em sua infância, e para lá ia sempre que a vida lhe deixava de sorrir.

Começara nos fins de semana. A distante cidade era um recanto com bosques, rouxinóis e tudo o que torna uma paisagem perfeita, parecendo um dos desenhos que entregara à professora do jardim, há muitos anos. Usando o balanço do parque, seu corpo se movimentava em sincronia com seus pensamentos e com o movimentar da folhagem. Ali não precisava explicar nada, talvez pela simplicidade das pessoas, que não lhe exigiam grandes formalidades. Tudo era aceito e eram raros os tons cinzentos e as formas retilíneas. A cor da infância finalmente voltara, sobrepondo-se ao cinza em que vivera até agora. Via uma qualidade lúdica na paisagem, as flores e árvores animavam-se à sua passagem, a cachoeira fria era mesmo agradável e podia compreender tudo o que lhe cantavam os pássaros.

Desvencilhando-se de tudo, mudava-se para aquela terra sem nome, que sempre conhecera. Nada ali era adverso e todos lhe sorriam como se nela também reconhecessem algo familiar. E assim viveu, por muito tempo, ao sabor das ondas de harmonia que emanava o lugar. Mas se em sua crença tudo seria sempre assim, alguns fragmentos obscuros, que recordava em vislumbres e sem desejar, insistiam em aparecer. E subitamente um inseto tão estranho e cinzento invadiu o cenário antes conhecido. As asas eram retorcidas e ela podia quase ver pequenos olhos encarniçados a lhe espreitar. Em vão procurou se livrar da criatura desconcertante que a perseguia por toda parte. O antes agradável clima da primavera trouxe um vento inóspito e numerosas nuvens escuras se reuniram sobre as árvores. Tudo acontecia tão rápido e ela sentia que perdia tudo. Aquele lugar que parecia lhe pertencer se esvanecia sob os olhos e novamente ela sentia que Alphaville, a qual já havia quase esquecido, ressurgia mais rapidamente do que podia suportar. Toda harmonia que vivera era deixada pra trás, como se nunca houvesse existido realmente.

A contragosto, Louise estava de volta. Não pôde imaginar que viveria ali novamente, junto aos seres autômatos que jamais puderam enxergar as verdadeiras formas e cores do mundo. De nada adiantaria lhes falar de tudo o que vira e sentira, pois estavam condenados a crer que seu mundo era o verdadeiro, e o dela, uma ilusão que somente os remédios curam. Quisera ela que inventassem cápsulas de ingresso à cidade desconhecida, para ministrar àqueles que jamais teriam uma chance de visitá-la. Quanto a ela, bastaria burlar os enfermeiros, escondendo seus remédios, e retornaria espontaneamente à cidade desconhecida
Juliana Correa

segunda-feira, 6 de outubro de 2008


Segredos para Lottie

Se o tempo parasse, para então eu juntar todas essas coisas perdidas nos pântanos, a vida seria melhor, Lottie. Tronco luxurioso. E os meus olhos se enchem de lágrimas, e as minhas lágrimas se enchem de alguma coisa secreta, que vem do delta no seu paradoxo venusiano e inatingível; tornei-me incansável nas investidas de olhares avessos e retóricos. Pois sou eu quem se cala sempre e quem se despede sem um aceno, vou indo de leve, de mansinho, deslizando no infinito, como se a mim fosse tudo confidenciado: o prelúdio do fim.

Tiraram-me as mãos dos antebraços, tiraram-me os braços dos ombros e as pernas para que não eu possa chegar até a ti. Tenho olhos culminantes e até o mais distante e grave deslize consigo gravar na retina, fotografar por detrás dos cofres encharcados de sal e água quente. Vim do mar porque não tive outra escolha, e por isso meus olhos são cristalinos, moles e líquidos.

Coro as bochechas, a face nua inteira. Vejo-lhe sem saber exatamente o que és. Sigo a estradinha que me leva até o caminho do encantamento, até o portão aberto e depois a casa toda sem móveis e as janelas abertas, redemoinho de poeira e cabelos louros subindo, subindo, dançando no meio da sala de jantar. E aqui sou o som de tudo em volta, sou os passos, e sou a mobília e sou os convidados e sou a própria comida. Faço-lhe o favor de me calar.

Ando percebendo – sem andar – aqui mesmo, bem como o mundo é... petit Lottie, a vida traga-me num desajeito tão grande, num desgosto imenso e eu, enquanto só eu; quero remendar tudo, sair costurando as nuvens, os grandes buracos acinzentados que percebo quando olho para o céu nesses dias de setembro. Embora toda a chuva e ventania e toda a eletricidade pairando no ar me cause um êxtase e felicidade enorme, sinto vontade de sair remendando tudo, deixando as coisas como deveriam ser, ou todas brancas, como se o céu fosse todo de algodão ou todo azul, profundo e tácito.

Mas não, eu não seria capaz, sei que há a volatilidade. E também sei que as coisas giram, e por tudo isto, desisto. Mas não morro. Continuo, e não disse quase nada, fico atrás do pensamento. Falo no destrambelho a mim mesma, porque contudo há o que sobra, palavras perdidas nas entranhas, grudadas na mucosa, na relva, nas plantas selváticas perdidas por entre os dedos de Lottie, que me espera, adormecida na cama enquanto penso que ela me ouve.

Falo e falo sobre o dia, sobre a brisa da manhã, sobre a volta, o porvir e o amanhã. Mas, não, Lottie é só uma menina e já está dormindo há pelo menos uma hora num sono profundo, mas leve, leve... a mãozinha encostada no rosto, mechas louras perdidas por todo o travesseiro e o corpo todo desprendido do resto, como se flutuasse no ar, mesmo em cima da cama, atrás de mim. E eu, uma egoísta, tenho vontade de acordá-la, sacudi-la e contar tudo sobre o mundo, sobre todo mundo e lhe dizer que, apesar de, há esperança e “apesar de, se deve amar”.
Valentina Baker

sábado, 4 de outubro de 2008


do filme “o assassinato de jesse james pelo covarde robert ford”

jesse James, antes de matar um de seus comparsas, sob um céu escandalosamente estrelado, ouve dele:

- eu nem sei o que é uma estrela.

jesse responde:

- seu corpo sabe. é a sua mente que esqueceu.

e instantes depois o alveja pelas costas.


Rodrigo Madeira

quinta-feira, 2 de outubro de 2008


Salmodiando

Telefone em punho
aos gritos.
Frio e touca o olhar perdido na fonte (praça?)
Feliz Aniversário,
Tainá!

Deisi Perin

Praça Tiradentes

Foto by Angela Gomes

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Praça Tiradentes


" As sombras da cidade se admirando no espelho da praça."
WN
Foto by Angela Gomes

Delírio

No pensamento a tua ausência é leve.
A tua ausência é lisa, tua ausência é rasa,
e desmancha-se no meu corpo em brasa
como inúmeros brancos flocos de neve.

Nos meus sentidos dados à minúcia
a tua ausência tem um peso de aura,
um porte de musa, uma doçura rara,
silêncio de prece, delirante fragrância.

E ela é tão suave, mesmo sendo constante
que às vezes em devaneio me surpreendo
dando atenção à idéia errante

de que existe um elo permanente.
E nem por força da vontade me desprendo
da sensação de que estás presente.

Iriene Borges

http://www.bardoescritor.net/ezine.html#Del%EDrio