sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Andarilha

O novo prédio reveste a carcaça do antigo casarão que fora armazém e residência há mais de cinqüenta anos. Manuela fita o passado olhando para o vazio da transparência da vitrine.
Vislumbra o balcão de madeira, encimado pela balança Filizolla, o fumo de corda e os gatos. Gatos de balcão. Imponentes, deixavam acariciar o dorso macio alongando-se ou pulando rápidamente se não gostavam do freguês.
A porta nos fundos da loja separava-a da residência que era fantástica.Um extenso corredor levava à sala e aos quartos. O alçapão revelava a escada que conduzia à cozinha no subsolo. Era algo mágico, diferente das demais casas conhecidas. Para a menina de então, descer por ali era uma aventura fascinante. Como aquela gente era rica!
No velório do avô a oportunidade de xeretar por toda parte foi perfeitamente camuflada pela condição de amiga da casa. Entrou aqui e ali, sem ser interrompida e vislumbrou cortinas, poltronas, camas, armários, tapetes tudo o que para ela, era sinônimo de abastança.
Visitava com o pai aos domingos o bar e sorveteria do Demétrio, no prédio ao lado. Embutidos no balcão, dois cilindros giravam produzindo a massa de textura macia e cheiro bom. Havia várias cores, de vários nomes, mas o sabor de todos era o mesmo.
O barulho do trânsito trouxe-a de volta.
Caminhou decidida com uma ponta de contentamento, pela calçada, por cima de suas pegadas de menina. Dobrou na esquina à esquerda. A pequena travessa, reformulada, é agora a avenida que liga os dois bairros.
Observou o prédio construído no terreno da casa da infância. Manuela visualizou o local exato do seu quarto de menina. Naquele espaço onde dormia e sonhava com quem iria ser quando crescesse.
Memória é pensamento e pensamento é cegueira porque não deixa ver as coisas como o são no momento presente.
Respirou fumdo e continuou sua caminhada com o sentimento de saudades de como as coisas eram, naquele passado que não existe mais.
Marilza Conceição

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