quarta-feira, 25 de julho de 2007

O Mundo Que Não Acabou

Para Ricardo e Deisi

A pilha de provas por corrigir olhava-me com ar de abandono. Eu devolvia esse olhar com ar de não-é-comigo. A notícia no Jornal Nacional foi muito clara: o final do século marcava o fim do mundo.
É verdade que corrigir provas faz parte do meu trabalho e só Deus sabe como procuro ser pontual na entrega das notas. Mas Deus sabe também como amo este mundo, este planeta, esta Terra redundantemente terrenal. E se é verdade de que o mundo está com data marcada para terminar, convenhamos, existem prioridades.
Conferi o relógio e faltavam ainda sete horas para o final do mundo. Resolvi abrir um novo arquivo no Word para enumerar meus pecados e despedir-me deste mundo com a consciência organizada, além de facilitar a vida do grande julgador. Com o melhor critério de organização, clareza e compostura, comecei a preparar o meu currículo ético e moral: na primeira fila , coloquei os pecados veniais, que eram muitos, mas por serem veniais me causaram pouco transtorno. Eles, os veniais, quase benignos, facilmente tomavam o seu lugar em rigorosa ordem alfabética. Os outros, os pecados do meio, que me permitiriam um bom estágio no limbo, eram menos, mas precipitaram dúvidas de ordem existencial... Ah, como passar pelo mundo impunemente! Mas não posso me queixar, as maldades de porte médio também se foram acomodando depois de médio sofrimento. E os pecados mortais? Meu Deus, que confusão! Descobri que não existe uma tabela clara que oriente o bom pecador com intenção administrativa de organizar devidamente seus pecados mortais.
O mundo deveria acabar à meia noite, palavras de Nostradamus, anunciadas na TV. E eu perdida no meio dos meus pecados mortalmente mortais. A ordem alfabética, procedimento mais conhecido de organização, terminou complicando a boa intenção: O que será que vem primeiro, a gula ou a guerra de pipocas alheias? - Gula, gula é pecado capital - falou o meu filho filósofo, que nesse momento, também deixou suas obrigações para mapear os seus próprios pecados .
- Capital? Acho que a gula é pecado Nacional. - completou o meu filho mais velho que preferiu organizar as boas ações. A filha mais nova gostou da idéia e ainda argumentou: - Não temos tempo a perder anotando pecados, eles já devem estar anotados em algum caderninho sagrado. Mas as boas ações certamente serão importantes argumentos a favor, caso o julgamento final permita alguma ponderação. Sei que não é fácil querer partir em paz. Faz falta um bom dicionário que oriente terminologia adequada, etimologia, para tirar as dúvidas, data histórica, acho muito importante, assim como o conhecimento dos antônimos e sinônimos dos pecados.
- O que...? O mundo não acabou, gritou meu marido, que preferiu regar o jardim, na esperança de que alguma coisa sobrevivesse.
- Não acabou?! - Passamos da meia noite há mais de cinco minutos.Fomos mortalmente enganados.
Não. O mundo não acabou e o trabalho dobrado nos espera. Inferno perpétuo deveriam merecer aqueles que brincam com algo tão sério. O que fazer, senão começar a classificar as provas dos alunos : veniais, médias, mortais.

Glória Kirinus

3 comentários:

Angela Gomes disse...

Bem legal!
Recordo de já tê-lo lido. Ele está no "Aranha Castanha"?
Sucesso!!! Bjks!

Pó & Teias disse...

Bacana!!!!!
Grato, Glória!!!!!!
RP

Natália Nunes disse...

me lembrou a música da abriana calcanhotto: e o mundo não se acabou.
;)