um sísifo maltrapilho
ossudo qual cão-ninguém
mourejando, recolhendo
pra depois não ter o mínimo
com o qual ir comer bem.
este pulso aberto na urbe
num esfolamento diário
de cuja fé nascem urzes
bocas feitas pras migalhas
escorre por entre o trânsito
transido, retorto, em transe
buscando latas, papéis
nos garimpos das lixeiras.
ele dorme num depósito.
ele fede a mel da urina
e a fumaça das fogueiras.
de manhã como de tarde
trajando roupa de aniagem
(calça jeans, hering furada)
seca as bicas do semblante
e segue a azarenta viagem
segue a recolher aos montes
pelos cantos da cidade
o que é resto, rebotalho.
por dezessete centavos
o quilo do papelão
atravessa bairro e bairros
(a boca de pó, ressaibo):
um cristo sem vocação.
ele segue a via-crúcis
com a sua cruz-carroça
pelas ruas da cidade...
e quando, com andar futil
desce a pé alguma guria
de retoque e não-me-toque
(porque inda não usa antolhos
vai cuidando das calçadas)
ele murmura entre dentes
entre ajustado e incoerente
pois seu despeito não cala:
“eu não deixo pra mais tarde!
viu, eu sou sangue nos olhos
mas o peito é meu canteiro!
não me encare sem me ver!
eu me queimo qual janeiro
moça, eu vou te recolher!
nunca tive quatro patas!
não sou infarto dos carros
não sou piolho de tráfego
nem a trombose das ruas!
não tenho culpa do atraso!
não sou bicho-de-goiaba
(ou bicho-de-pé, de-a-pé)
neste asfalto de viaduto!
não vim de podres condutos
infeccionar a paisagem!”
quando ele não é invisível
é um nó górdio na garganta
de quem quer ir impassível
de quem tem seu carro como
uma casa em movimento
quem cronometrando avança
quem kilometrando pisa
cuj´alma é de lataria
e o descaso, de cimento.
quantos dão a preferência
nas manhãs engavetadas
nas tardinhas entrevadas
para o carro da indigência?
quantos dão a preferência?
quantos, de fato, se inquirem:
quais são as suas histórias?
como, com tão pouco, vive?
pensamos mas esquecemos:
voltamos a nos coçar
com nossas íntimas pulgas...
em programas de tevê
em rodadas de cacheta
em sessões de pedicuro
pisa-se o bicho-da-culpa.
mas entre a favela e o centro
ao sol que apodrece, lento
mourejando, recolhendo
pra depois não ter o mínimo
com o qual ir comer bem
o sísifo maltrapilho
agora carrega um filho
ossudo qual cão-ninguém
Rodrigo Madeira
sábado, 30 de junho de 2007
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2 comentários:
Querido Rodrigo, seu poema tem a densidade de um astro, que ao curvar o espaço, entre espasmos do tempo, fardo e cansaço irradia beleza.
Gostei muito deste, Rodrigo.
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