quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Respostas de Hermes

1) Hermes, avós e avôs são seres poéticos, assim, como a infância. Mesmo os mais bravos ou implicantes, nos soltam uma palavra que ninguém diz, ou melhor, alguma história ou maneira particular de compreender a vida. Quero saber do neto Hermes nesta relação e neste universo.

R)- Meu avô paterno, o Sr Segismundo, conhecido como "Seo" Mundinho, era um homem austero, trabalhador. Quando jovem construía casas a partir de livros italianos de construção civil que meu bisavô trouxera na bagagem ao fugir para o Brasil com a II Grande Guerra estourando na Europa. Família simples, trabalhadora e amedrontada. Minha avó era a cunhada, babá das duas primeiras filhas dele, foi sua segunda esposa após o falecimento da irmã. Chamava-se Carolina, a vó Lola, como carinhosamente a chamávamos. Meu avô cosntruiu muitas casas, mas ele envelheceu e os engenheiros de formação começaram a conquistar o mercado, "Seo" Mundinho precisou mudar o ramo de atividade e passou a vender osso e ferro para as fábricas de pentes e de grampos, além de vender verduras. Ele tinha a maior e melhor horta da cidade. Meus tios e meu pai venderam verduras na cidade. E eu, aos nove, dez anos, catei ferro e ossos para ganhar uns trocados. Ele construiu um bom patrimônio. Das visitas à casa dos avós paternos, recordo das broinhas de polvilho, das rapaduras, das bolachinhas de leite e mel e do cabelo barnco da vó Lola preso em bandó e de sua voz macia. Lembro da cama de ferro enorme em seu quarto e do mosquiteiro usado para deter os mosquitos. Já de meus avós maternos, lembro pouco. Vô Celeste era ferroviário. Sempre sorridente, nos recebia com muito carinho, mas com a sensação de que já ia partir para a estrada de ferro. E a vó Almerinda tinha um buço tão destacado que eu receava me aproximar. Mas lembro de que ela gostava de flores. E cultivava uvas e cáquis no fundo do pátio. Os de chocolate preto eram meus preferidos. Mas havia um controle enorme de quantos e quando podíamos comê-los. Na casa de meus avós maternos havia muitas coisinhas penduradas nas paredes. Uma delas era uns sapatinhos de louça, de onde pendiam delicadas florezinhas que quase chegavam ao chão, tamanho o cuidado vó Almerinda tinha em tratá-las. O dia em que fui mais feliz, foi quando ganhei de minha avó paterna, a Lola, uma cama de ferro. Eu pulava, pulava, pulava nela, porque a mola era muito resistente. E o colchão era de palha. E o melhor, tinha meu próprio mosquiteiro para afastar os mosquitos. Na hora de dormir eu pensava que estava num castelo, bem protegido de todos os males que nos rondavam.

2) Nas iniciativas que envolvem leitura, contação de histórias, e mesmo nos seus livros publicados, há muita costura, fio, agulha, pano para manga, heim? Texto e tecido são palavras irmãs, sabemos.

Mas, me diga, de onde vem este fascínio de juntar pano com pano e costurar tantos tecidos?

R)- Não sei, Gloria. Juro que não sei, mas suponho que tenha a ver com o fato de minha avó materna fazer todas as roupas da família. Aliás, minha mãe herdou sua máquina de costura. Uma bem antiga. Depois, acho que inventaram de tirar a máquina e colocar um tampo de vidro sobre os pés de ferro para depositar o telefone. Na época, isso era chique. O enxoval da minha mãe foi todinho bordado a mão pela vó Almerinda. Tudo muito lindo, com bordados nas fronhas, nos lençóis. E minha mãe não se desfaz de algumas peças até hoje. Mais tarde minha mãe teve uma máquina de tricô. Minha mãe nunca aprendeu a usá-la direito. Meu pai era um homem impaciente e achava que aquilo tinha que dar lucro, afinal, fora um enorme investimento, mas eu li bem o manual e aprendi a fazer meias, toucas, luvas de lã e até blusões. Isso aos 14 anos. E, pensando agora, acho que tem a ver também com o tal mosquiteiro, cheio de tramas, por onde vazavam meus sonhos e com os fios de cabelos brancos da vó Lola, tão clara, tão linda.

3) Enumere algumas surpresas, perguntas curiosas, comentários, que seus livros provocaram nos leitores.

R)- Com referência ao livro Planeta Caiqueria, da Editora Projeto, na Bahia uma menina de nove anos, de minisaia colorida, bustiê justinho, levantou-se, pôs as mãos na cintura e me perguntou com quem a Criatura (personagem da história) transava. Imagine, com nove anos perguntando isso! Fiquei desconcertado. Engoli em seco. Como se diz no teatro, deu um branco. Fiquei a contemplá-la, perplexo. Ela, ainda com as mãos na cintura, insistindo, quase me afrontando. Então, disse-lhe que eu não sabia, pois não havia ficado muito tempo no planeta, mas supunha que a Criatura não pensava em sexo ainda, pois ainda era muito pequena para pensar nessas coisas e acho que ela, a Criatura, preferia brincar. Já com o livro Casa Botão, a primeira vez que fui falar com leitores sobre o livro, foi para uma turma de EJA. Foi numa comunidade conhecida por ser um lugar bem perigoso aqui em Porto Alegre. É uma das escolas integrantes do Programa de Leitura Adote um Escritor, da CRL e da SMED. Confesso que eu estava apreenssivo, pois nenhum taxista queria entrar na Vila Bom Jesus, pois o encontro seria à noite. Há muitos conflitos entre duas gangues que disputam o poder na vila. Mas, enfim, consegui um taxista com o auxílio da Sônia, da Câmara do Livro, e fui. Foi emocionante. Fui acolhido que o temor passou de lado e fiquei quase três horas conversando com eles. Nesse encontro ecebi de presente um pano de prato confeccionado pela Dona Ilsa, uma senhora de seus cinquenta e poucos anos que trabalha durante o dia e estuda à noite. Era o primeiro resultado concreto feito com o livro Casa Botão, da Editora DCL e agora ele está emoldurado e pendurado na parede de casa.Mas eu teria milhões de histórias para contar de cada ida a algum lugar. Mas não posso me estender muito, né?

4) Quando você recebe convites de escolas, como autor, você aceita? Coloca algumas condições? Normalmente as escolas o convidam com uma leitura prévia dos seus livros? Como você administra a situação em caso contrário?

R)- Depende. Há anos que me disponibilizo mais, outros menos em decorrência de algum trabalho que exige mais pesquisa, como quando estou dirigindo alguma peça de teatro ou construindo sua dramaturgia. Minha relação com escolas, são as Editoras que administram. Se recebo algum convite diretamente, passo para a Editora. Temos nossos acordos. Em não havendo adoção, entro na negociação e vejo como pode ser feito. Quando há lançamento, me debruço em promover a obra. Adoro contar as histórias que estão detrás da obra publicada.Ponho a boca no trombone em determinados tópicos de nossa lista de discussão da AEILIJ. Acho que tricotar deve ser em privado. Há conversas que não me dizem respeito ou à associação. E dá um trabalho deletar... Por isso, vai meu conselho: quando der vontade de fazer fofoca, elogios, blá, blá, blá, sugiro, escrevam uma história, canalizem para algo realmente produtivo e que fará diferença. Ou, se insistirem, façam-no em privativo.E ponho a boca no trombone para elogiar Sandra Ronca, sempre compartilhando informações sobre concursos e atividades ligadas à LIJ.


Respostas de Gloria

1) Na sua infância, no Peru, quais os autores que a menina Gloria gostava e, quais a escritora Gloria Kirinus gosta?

R)- Hermes, só de pensar na infância, e no Peru, as palavras em espanhol acodem. E elas chegam com jeito de cantiga de roda e cantiga de ninar. Então, meus autores da infância foram, inicialmente, da oralidade poética universal. Depois chegaram as coleções de contos de fadas que ganhei num Natal: Hans Christian Andersen, irmãos Grimm, Perrault. Lembro que chorei muito com a leitura do livro "Coração" de Edmundo de Amicis. E mais tarde devorei as novelas exemplares de Miguel de Cervantes, como "el licenciado vidriera" e "la gitanilla". Ah, o famoso "el lazarillo de Tormes" também foi uma leitura especial na minha infância.Meu primeiro contato com a literatura brasileira aconteceu quando iniciei, numa escola municipal, no interior do Paraná, o trabalho de professora de inglês (claro, eu nem sabia português). Comecei a ler de tudo, fileira por fileira, todos os livros da biblioteca da escola. José de Alencar, Machado de Assis, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego... Depois iniciei o curso de Letras na UFPR. Pensei que iria sofrer muito como estrangeira. Nada disso, eu já tinha lido tudo nessa biblioteca escolar!!!!Gosto muito de Guimarães Rosa na prosa e Manoel de Barros na poesia.

2) Conte-nos como brotou a vontade de escrever para crianças?

R)- Quando era criança alfabetizei meu irmão mais novo. E sentia muito prazer de brincar com palavras, como toda criança. Em mais de uma oportunidade perguntava para meus pais: existe o ofício de "palavreira"? Não existia. O que mais se aproximava (aconselhavam eles) seriam os cursos de línguas. Daí que eu me interessei muito por estudar línguas. E ainda tenho um fascínio especial por elas. Vivo procurando Babel constantemente e nos congressos internacionais me sinto em casa.No Brasil, depois de muitos atrevimentos, criei a oficina de criação literária "Lavra-Palavra". E quem nutria de palavras brincantes minha oficina eram os livros de Literatura Infanto Juvenil, em especial Monteiro Lobato, assim como a fala das crianças (meu ouvido está sempre muito atento aos repentes poéticos das crianças). Simultaneamente, na disciplina de Literatura infanto-juvenil, na UFPR, descobri a riqueza e beleza da literatura para este público. Fui tateando caminhos até que publiquei meu primeiro livro em 1985, pela editora Nórdica. Na época, uma trágica enchente que assolou o Sul do país (1994) motivou a escrita do meu primeiro livro (O Sapato Falador), atualmente reeditado pela Cortez. A vontade de escrever para crianças nasceu com minha própria vontade de inventar o ofício de palavreira. Meus pais eram professores de Literatura. E literatura em prosa e verso não faltaram na minha formação. Até ali, beleza! Só que eu não contava que a vida me faria aprender tudo de novo em língua estrangeira. Mais tarde chegaram os livros bilíngües.

3) E, afinal, Gloria, quando é que as montanhas conversam?

R)- Isso de considerar os objetos inanimados como vivos, com sentimentos humanos, faz parte da percepção do mundo infantil e da percepção mito-poética do mundo. Por outro lado, venho de um país de montanhas. Uma cordilheira dos Andes que confabula tempos milenares com uma costa desértica de um lado e uma selva amazônica do outro, fazem parte das minhas paisagens peruanas. Então, como não iniciar uma conversa com estas montanhas?Poucos sabem que meu pai era poeta. E ele tem um poema muito bonito em que faz falar as pedras, atribuindo às mesmas, comportamentos humanos: "Que dirán las piedras donde yo solía sentarme em la noche a mirar la luna, que dirá mi perro, que dirá mi madre.....". Então, para quem viveu ouvindo diálogos de pedras, é muito fácil compreender e ouvir a conversa de montanhas. Neste livro "Quando as montanhas conversam/" que é bilíngüe, com a versão em espanhol (Paulinas) além da conversa de montanhas entra a simultaneidade de ações. A palavra "enquanto" marca a conversa mostrando que sempre acontecem muitas coisas entre conversa e conversa. Essa simultaneidade me permite acessar a chama de cosmicidade que carregamos desde sempre, desde humanos. Recentemente estas montanhas foram para o teatro. E senti vivamente a simultaneidade de outras artes traduzindo a criação pessoal. Gosto desses múltiplos. O que seria de nós se somente fossemos nós. Bem poetava Mário de Andrade: sou trezentos, sou trezentos e cincoenta, mas quem sabe um dia, toparei comigo. Acho que topei com minha origens, conversando com as montanhas.

4) Bote a boca no trombone:

R)- Que boa oportunidade para falar sobre algo que me inquieta e incomoda muito. Certamente outros colegas desta lista também recebem convites para prefaciar livros de poemas criados por crianças na sala de aula. Sim, a leitura de poesia chama criação de poesia. E esta acontece e nasce e cresce até que um dia.....Esse é um caminho natural. Ler os textos criados pelas crianças em sala de aula e orientados por professoras que não compreenderam o que é poesia.... Ah, isso me tira do sério. Quando recebo os convites para prefaciar tais livros, o primeiro que faço é pedir uma cópia dos poemas. Normalmente confirmo a falta da poesia e no seu lugar descubro a voz do adulto. Poemas sobre patriotismo, sobre dia do índio, sobre cuidados com a natureza e sobre a higiene dos dentes. Isto, além de não ser poesia, retira o que existe de naturalmente poético na linguagem infantil. Claro, devolvo os textos e lamento o equívoco. Normalmente eles sempre acham outro escritor que faça o tal prefácio. Por conhecer a poesia viva que nasce da voz das crianças me nego a autografar poemas engessados e áridos com autoria de crianças.Por outro lado, não precisamos profissionalizar e precipitar uma autoria nas crianças. Que entrem em contato lúdico e prazeroso com as palavras, como se fossem novos amigos. E que aguardem o tempo da publicação, quando adultos. Que guardem como pérolas preciosas suas criações (quando verdadeiras, claro)e que re-escrevam, que selecionem, que mostrem no tempo de publicar. Mais tarde, caso a vontade de escrever persista serão escritores. Mas isso de logo forçar publicações com lançamentos e tudo o mais, sei não... Que a poesia na sala de aula aconteça viva e que se salve do utilitarismo, do imediatismo e do adultismo que, na sua sede de consumismo, muitas vezes adultera a voz que naturalmente promove surpresas com a linguagem: a criança, o poeta. Ihhhh quase quebrei o trombone...! Que bom que falei algo que estava entalado.
Grata pela entrevista e um Novo Ano promissor e compromissado com nossa AEI-LIJ.

http://aeilijsp.blogspot.com/

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