sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O Bico do Cisne

Ela queria achar sua tesourinha dourada de ponta de bico de cisne, mas somente achou chaves, umas chavinhas graciosas em um maço de três, dentro de um saco com velhos vidros e jarros, que foram todos para o lixo, e um cadeado vermelho, também com chave e um bichinho de pelúcia que ela mesma fizera, com um olho maior do que o outro. Ela pensou que talvez sua mãe tivesse um jeito mais doce e funcionário público de ser segura do que seu pai liberal e comunista angustiado,  que diferença fazia isso agora ao defrontar os fracassos da vida, mais um será possível, mas o fato é que o suco de mirtilos lhe parecia insuportavelmente artificial.  Tudo lhe parecia artificial.  Um suco colorido, continha anidrido sulfuroso, como ele dissera assim na lata.  Será que isso era uma tinta, uma cor, um gosto, um cheiro, um nada. Unhas passando pelo vidro.  O saco de velhos artesanatos continha vidros de amostras da Deirolle, Paris. Que coisa mais poeirenta e insuportavelmente poética, ela sabia que nunca, jamais poderia se desfazer dos frascos da Deirolle, sob pena de ser amaldiçoada para sempre até cair de vestido dentro de um córrego e morrer afogada com todos os cabelos flutuando ao seu redor.  O vestido era verde. O seu cachorro estava ficando cego mas mesmo assim os vaga-lumes brilhavam no jardim e tentavam entrar pela janela para morrer aos poucos apaixonados pelas lâmpadas elétricas.  Eles tinham o corpo comprido com duas listinhas como tantas sementes de girassol ; todavia, apesar de serem apaixonados pela luz, não brotavam quando plantados, apenas se deixavam ficar em passiva nitidez na estante branca quando ela os achava de manhã, pegava-os na mão e os colocava para fora, agarrados a uma folha da palmeirinha anã. Resignada com a cegueira remelenta, sem muito o que fazer, ela catou os Deirolle de volta da lata de lixo onde jaziam em meio a cascas de abacaxi. Rezando para o que o sol não os esturricasse, mas agora era noite, ora essa que brilhassem. Os vaga-lumes, não os frascos. Por que será que tudo isso era tão difícil as lágrimas iam escorrendo bobamente pelo travesseiro e ela via que as nuvens passavam, passavam na verdade muito rápido e havia as luzes de um avião entre elas, que passavam também, na direção oposta até que o quarto parecia estar voando. O cachorro cego talvez ainda fosse possível salvar, uma impossível dívida na veterinária que lhe dava chocolate na boca, mas os monstros de feltro velhos agora jaziam semi-mortos cheios de traças e nem mesmo a tesoura de ponta de grou ou de qualquer pássaro do bico pontudo ela não conseguira mais achar, para retirar uma etiqueta áspera que lhe agredia a nuca como um beijo de barba crescida. Quem dera. Uma simples amizade perdida. Qualquer lojinha barata de armarinhos resolvia isso em menos de cinco minutos. Era ela que o deixava tonto, ele dissera. A etiqueta raspava e ela jogou a blusa na cesta de roupa para lavar. Pronto.


Cláudia Lopes Bório