sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Picasso ao contrário

Sempre tive necessidade de criar teorias. Naquela tarde, suspensa entre verão e inverno, essa era minha ânsia. Aí surgiu dentro de meu olhar, um entendimento. Pude quase sentir e escutar, no silêncio da casa, a faísca e o estalo da compreensão.

O chá de boldo já adquiria a tonalidade verde-escuro-amargo perfeita para o gole. Sentei-me, o livro de Picasso sobre a mesa. Essa seria a função do dia: folhear Picasso. Ainda sem saber que dele brotariam cúbicas reflexões.

As pessoas desfiguradas ali, os olhos verticais. Pescoços que não sustentavam cabeças, chão que não construía retidões. Mas a beleza repousando exata.

Também, de mim, vindo uma lembrança: sempre desconfiei de gente figurativa demais, com cabelos renascentistas, sapatos que luzem, costuras que não desfiam, camisas que não amassam. Ou a ordem excessiva, de estantes de livros novos, de jogo de louça completo combinando com os copos, me assinalando um tipo particular de morte interna. E ainda aquele homem, cuja presença me havia feito experimentar o gosto de ruína e desespero.

Picasso era então como o provérbio chinês: desconstruía para manter a essência. Banal, comum o lugar, mas assim, assim era. Mesmo do violão desconectando planos conseguimos imaginar a música de uma chuva tórrida sobre suas cordas não-paralelas. A desconstrução do visível para mostrar, o que , num descuido, desenxergamos.


Luciana Cañete

Nenhum comentário: