sábado, 29 de janeiro de 2011
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Picasso ao contrário
Sempre tive necessidade de criar teorias. Naquela tarde, suspensa entre verão e inverno, essa era minha ânsia. Aí surgiu dentro de meu olhar, um entendimento. Pude quase sentir e escutar, no silêncio da casa, a faísca e o estalo da compreensão.
O chá de boldo já adquiria a tonalidade verde-escuro-amargo perfeita para o gole. Sentei-me, o livro de Picasso sobre a mesa. Essa seria a função do dia: folhear Picasso. Ainda sem saber que dele brotariam cúbicas reflexões.
As pessoas desfiguradas ali, os olhos verticais. Pescoços que não sustentavam cabeças, chão que não construía retidões. Mas a beleza repousando exata.
Também, de mim, vindo uma lembrança: sempre desconfiei de gente figurativa demais, com cabelos renascentistas, sapatos que luzem, costuras que não desfiam, camisas que não amassam. Ou a ordem excessiva, de estantes de livros novos, de jogo de louça completo combinando com os copos, me assinalando um tipo particular de morte interna. E ainda aquele homem, cuja presença me havia feito experimentar o gosto de ruína e desespero.
Picasso era então como o provérbio chinês: desconstruía para manter a essência. Banal, comum o lugar, mas assim, assim era. Mesmo do violão desconectando planos conseguimos imaginar a música de uma chuva tórrida sobre suas cordas não-paralelas. A desconstrução do visível para mostrar, o que , num descuido, desenxergamos.
Luciana Cañete
domingo, 23 de janeiro de 2011
As ondas do mar tramam
uma rede que nada pesca.
Tecem e
destecem,
Retecem,
tecem
a efêmera renda
que de alvura
tudo cobre
e nada segura.
Toda sobre,
por invisível mão
lançada.
Língua de rendada água,
que lambe o sal e não se salga.
Ou de Sísifo uma lembrança
a agarrar o que pra sempre lhe escapa?
Tessitura incessante, insone
que se faz e refaz,
toda uma, a mesma
sempre e nunca.
Envolve e não retem:
o mar.
Luciana Cañete
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Cruzes de Janeiro
assinam em cruz
a maioria dos mortos
dos desmoronamentos Brasil
repórteres absortos
falta água falta ambulância
falta luz nesse país
do céu azul de anil
na cruz das almas
os dilúvios de dezembro e
de janeiro da cruz vermelha
pessoas jogam flores
na praia pra Yemanjá
já que o Cristo ficou lá
pregado na cruz
nessa encruzilhada olhai
para o Cruzeiro do Sul
bate na madeira faz um cruz-credo
dizei aos políticos:
Pilatos, mais uma vez
suas mãos lavai
entre a cruz e a espada
entre pedras, enxadas
a vida levada pela lama
nesses vales que quase nada
Edu Hoffman
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
Carta Grata Ao Indissolúvel Poder Universal Da Emancipação Moral E Financeira De Tudo Sobre Tudo Aquilo Que Julgo Sem Poder Julgar
Não obedeço mais.
Eu não sou mulher para te fazer feliz.
Eu não sou homem para te fazer feliz.
Eu não sou máquina para te fazer feliz.
Eu não fico, eu não saio daqui para te fazer feliz.
Eu acordo e o sangue já existia, o dia já ia alto, o nome, a economia internacional, a praça e os flagelados.
A alma fraca e pobre já existia, o sol, a família. O poder já existia, fundado, fundante, fundável, afundado.
Eu não sou mendiga para te fazer feliz.
Eu não sou menina para te fazer feliz.
Eu não sou mentira para te fazer feliz.
Eu não te agrido para te fazer feliz.
Eu não tenho uma mãe burra para te fazer feliz.
O meu sapato apertado, o couro engomado: eu não sou vítima para te fazer feliz. Nada em mim é para te fazer feliz.
O meu amém não é teu, é ateu, é até, é além, é por sobre o vôo inconstante dos mitos renegados, adorados e dilacerados pelo amor de um povo sórdido.
A rua não é tua, não é minha, não é de Deus, não me venha com lorotas. Eu me vesti assim hoje para viver. Somente para viver.
Eu não te roubo para te fazer feliz.
Eu não te amo para te fazer feliz.
Eu não respeito a tua opressão.
Eu não sou assim para te fazer feliz.
Eu não engulo teu sexo para te fazer feliz.
Eu não engulo a tua porra para te fazer feliz.
Eu não assino um nome civil para te fazer feliz.
Eu não me calo, eu não falo para te fazer feliz.
Eu não rio para te fazer feliz.
Eu não caso, descaso, tenho filhos, sigo rumos, persigo para te fazer feliz.
Eu não sossego o facho para te fazer feliz
Léo Glück
Eu não sou mulher para te fazer feliz.
Eu não sou homem para te fazer feliz.
Eu não sou máquina para te fazer feliz.
Eu não fico, eu não saio daqui para te fazer feliz.
Eu acordo e o sangue já existia, o dia já ia alto, o nome, a economia internacional, a praça e os flagelados.
A alma fraca e pobre já existia, o sol, a família. O poder já existia, fundado, fundante, fundável, afundado.
Eu não sou mendiga para te fazer feliz.
Eu não sou menina para te fazer feliz.
Eu não sou mentira para te fazer feliz.
Eu não te agrido para te fazer feliz.
Eu não tenho uma mãe burra para te fazer feliz.
O meu sapato apertado, o couro engomado: eu não sou vítima para te fazer feliz. Nada em mim é para te fazer feliz.
O meu amém não é teu, é ateu, é até, é além, é por sobre o vôo inconstante dos mitos renegados, adorados e dilacerados pelo amor de um povo sórdido.
A rua não é tua, não é minha, não é de Deus, não me venha com lorotas. Eu me vesti assim hoje para viver. Somente para viver.
Eu não te roubo para te fazer feliz.
Eu não te amo para te fazer feliz.
Eu não respeito a tua opressão.
Eu não sou assim para te fazer feliz.
Eu não engulo teu sexo para te fazer feliz.
Eu não engulo a tua porra para te fazer feliz.
Eu não assino um nome civil para te fazer feliz.
Eu não me calo, eu não falo para te fazer feliz.
Eu não rio para te fazer feliz.
Eu não caso, descaso, tenho filhos, sigo rumos, persigo para te fazer feliz.
Eu não sossego o facho para te fazer feliz
Léo Glück
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
das cirurgias plásticas
I
Dona Maria, cinquentona, ficando pra titia, queria arranjar um gatinho, como dizia a sua sobrinha. Foi então que suas amigas lhe recomendaram um cirurgião plástico. Data marcada, a senhora foi pra faca. O doutor de mãos hábeis e praticas cortou-lhe os braços e as pernas e no lugar desses membros fez o transplante de quatro patinhas de um animal da família dos felídeos.
Para sorte de Dona Maria, o mamífero tinha pedigree.
Giuliano Gimenez
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
Lacrada
O mau cheiro que vinha da casa lacrada começou a ser sentido pelos vizinhos. Um dia umas crianças travessas arrebentaram o lacre de barro. Dentro, o cadáver dela em decomposição.
Especulações.
Um vizinho disse que sempre ouvia os sons de briga: "Discussões por minhocas da vida".
Outro disse que viu quando o parceiro dela lacrava a porta da casa, retirando-se noite adentro sem olhar para trás. Em busca de um voo solitário.
Mas nada ficou provado e sequer o acharam.
Só se sabe que foi achado o cadáver da fêmea do João de Barro dentro da casa lacrada de barro.
Susan Blum
Especulações.
Um vizinho disse que sempre ouvia os sons de briga: "Discussões por minhocas da vida".
Outro disse que viu quando o parceiro dela lacrava a porta da casa, retirando-se noite adentro sem olhar para trás. Em busca de um voo solitário.
Mas nada ficou provado e sequer o acharam.
Só se sabe que foi achado o cadáver da fêmea do João de Barro dentro da casa lacrada de barro.
Susan Blum
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