sábado, 21 de março de 2009

Moebius

(Dedicado a André Ribas)

Volto tarde pra casa.
Nos ombros, o fardo de mais um dia derrotado.
O semblante caído.
As horas inchadas de coisa nenhuma.

Caminho rumo ao terminal,
Prometendo a mim mesmo,
Nunca mais usar meias encardidas para trabalhar.
Elas formam uma crosta horrível de sujeira nos pés.

Vindo em minha direção, um mendigo.
A tez morena, os olhos vazios de tudo.
A barba grossa a cobrir-lhe o rosto.
Postava-se tal qual um faquir, zeloso de suas fraquezas.

“Senhor, chamo-me Arzach.
(Os lábios flácidos, amarelados e ríspidos).
Venho de um mundo diluído em guache e cores rubras.
(O olhar retraído, atento em meus gestos).
De um sol de carbono e fibras vegetais.
(Sua voz era forte, escarnecida de pústulas e entojo).
Atravessei secreções de enxofre. Os vales verdes de Verlousins.
(As mãos inchadas de mel e alcatrão).
Sacrifiquei exércitos, entalhei palavras de afeto ambíguo em corações mornos.”
(Inibia o fel em sua saliva, como o pranto em sua sombra mortal).

“Rogo humildemente vossa atenção.
Meu mundo encontra-se doente, ressequido.
Nossa memória, diluída num veludo de estrelas anil-fossilizadas.
Éramos uma colônia de Taenias Solium Imaginautas,
Hospedávamos o intestino singular de todo tecido vertebrado.”

“Desditoso, agora venho a ti,
Colhido em vergonha,
Pedir para que devore meu povo.”

Sem delongas,
O estranho homem revira seu casaco
Cioso de seus segredos.
E um aljôfar larval aparece em suas mãos.

“Engula”, ele diz.
“Almejo apenas um fim inflado de emoções,
Carregado de vida, mácula e insensatez.
Um lamento altivo, pleno de coragem e dor,
Que afague a solidão do Mouro, enamorado em algarismos teológicos.”

Sem hesitar, atendo seu pedido.
No instante em que sorvo a ilustre esfera,
Uma luz intensa reluz de meu ventre.
Combinações aleatórias de cores surgem em imagens convexas.

Um brilho imundo decompõe a retina.
Fluidifica o corpo.
Contrações elétricas saturam o ar com cristais de gelo e ozônio.
Sinto a diminuta orbe dilatar,
Consumindo toda carne,
Jeans e excremento que era.

E então...
Nada.
Estou parado rente a uma esquina.
Os olhos bêbados de luminosidade.
Na pastelaria ao lado,
Um velho sábio chinês tenta ensinar física molecular
Ao gato que urina em sua mesa.
Nada era perversamente igual ao que sempre fora.

Uma garoa fina cobre meu rosto.
Sinto a garganta embargar, acho que estou febril.
Meus pés doem,
Odeio essas malditas meias sujas.

Athos Achy Maia

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi. Eu gostaria de explicar duas referências importantes que o poema apresenta. A primeira é com relação a Arzach, personagem criado por Moebius. Ele foi inspirado no ator Toshiro Mifune, que trabalhou com Akira Kurosawa em vários filmes, dentre eles Os Sete Samurais. O personagem foi criado em 1974, e fez grande sucesso mesclando humor e aventura em suas histórias.
A segunda é com relação aos vales verdes de Verlousins. Essa é uma referência mais obscura, trata-se de uma gravura pintada pelo autor onde ele retrata uma família de Naugeurs aéreos, (um bando de elfos amarelos???), voando sobre as referidas montanhas de Verlousins. É uma gravura muito bonita. Daquelas que gostaríamos de entrar por uma fresta do desenho. Fugir por uma passagem despercebida que o autor escondeu em seus traços, e interagirmos com os demais personagens ali presentes. Acho que no fundo essa gravura foi a maior inspiração para que eu começasse o poema.
Ah, já ia esquecendo, vou poupar seu tempo de ter que olhar no dicionário e procurar o significado da palavra aljôfar, ela significa pérola. Bem, é isso. Espero que goste.
Abraços
Athos