quarta-feira, 23 de maio de 2018

PARADOXOS




Entre façanhas ditosas
Onde a vaidade se esconde,
As coisas mais curiosas
Não há sonda que as sonde.

Ouvi, almas caridosas:
Contaram-me não sei onde
Que há três coisas bem charmosas
Que teve Vila do Conde

Ouve incêndio nos bombeiros,
Ouve um assalto à polícia,
Não era suficiente?

Da obra das mães, museiros,
Com perícia, sem malícia!
Foi solteira a presidente!

José Sepúlveda
(O Canto do Albatroz)

POEMA ABISSAL




gutural
este grito
aprisionado
lançado
entre o azul-perdido
que persigo
e o negro-nada
que me cala

enquanto a palavra
imersa
fria
aguarda o voo
mas se faz mergulho

(Celso Mendes)



Poesia é uma pena
que deixa de voar
assim que se liberta do ninho



Alvaro Posselt  

Um pequeno sol escurecendo a visão.
Na escuridão do quarto o olho cego de uma lanterna.
A porta arrombada de uma morada.
Um sórdido quarto de pensão
testemunha a prisão de um insone ladrão
de sonhos.

Inocência ausente desertora precoce
prece silenciosa diante do abismo e seu sorriso.

Porta aberta sangrando histórias que só as sombras sabiam.

Sob o colchão mofado acorda como quem se livra de afogar-se
o morador da pensão olha no olho da lanterna
o cano de uma arma.

Esteja Preso !

Wilson Roberto Nogueira.


Naquele café esfumaçado bebia a si próprio , a cada gole ,enquanto o tempo passava .Impreciso caminhar."Que horas 'serão' , será noite ou dia ?Não importava mais, sua juventude se fechara e só restara uma lâmina de luz cortando os pés da porta.
Chegou em sua sórdida morada embora não tenha lembrança de haver caminhado até lá .Pôs-se a descamar-se de suas roupas e a medida que se aliviava delas , não encontrava sinal de si.A sombra que o perseguia , perseguia o sobretudo que ora o cobre de seu derradeiro inverno .
Agora entre o pó e as teias de seu quarto tornara-se o vulto translúcido de seu trincado espelho.

Wilson Roberto Nogueira


Pego um livro e leio nas bordas outras vidas  ,
em letras ora miúdas como mexilhão no coral ,
ora  octopode  oculto na tinta de seu corpo evaporado na fuga
e me pergunto se velhos fantasmas
transaram no silêncio dos sonhos ;
outras vozes em mares revoltos ou na calmaria,
onde barcos pensam
outros destinos em outros mundos,  portos a conhecer.
Veias  em alva pele, macia ou já amarelada, não importa ;
continentes ocultos que lançam sombras luminosas
na orla da praia das sensações .
Uma simples leitura mergulha em mares profundos,
onde em cada nível, novas leituras são possíveis.
Quando o fôlego não deserta para deixar ao sol,
nosso cadáver naufrago.

Wilson Roberto Nogueira


PROCESSO



Alma adictada
de imagens
fuligem
afetos em fuga

necessário é pois
a depuração

entre tanto
como separar
do entulho interno
a porção eterna & imprescindível?



Ricardo Mainieri

Mortuaria.




Seguimos caminhando por entre tumbas modernas, sepulturas Formosas, lembrando-se dos velhos cadáveres que elas abrigam e de suas feridas letais, aspectos trágicos de suas memorias, contribuições significativas para seus atuais quadros degenerativos, palidez mórbida e estrutura esquelética. Tudo pelo qual foram diagnosticados mortos, para assim hoje possuírem tão belas moradias fúnebres.
É um belo passeio quando a carne esta morta e os olhos enterrados, não se pode odiar, não se pode discordar, às vezes é tão fácil perdoar. Tudo acerta um ponto depois da vida, e as regras básicas de uma visita a um ex-vivo são; deixar a animosidade de lado, trazer um sorriso na face, uma lagrima esporádica no olho e um enorme senso de conformismo imposto na testa. Dos mortos não colhemos a mentira, às vezes por ela morremos e muitos defuntos colhem confissões. É mais fácil admitir certas coisas quando não se está sendo ouvido; os mortos assumem um papel de consciência, de padres, de psicanalistas. Todos possuem luxos em vida, e na morte tudo não passa de promessas, o que de mais concreto e verdadeiro pode ocorrer é uma bela cerimonia, votos de saudosismo e lagrimas caindo ao chão. Uma pena, pois colhemos tanto em vida que penso que na concretização dela deveríamos ter algo mais solido e especifico. Dizem que a morte vem para nos levar. Da vida não se pode dizer o mesmo, ela não tem estas poderes supremos depois que morremos. Num estado tão especial e único de meditação me imagino rodeado de silencio e paz, sem e matéria severa, sem limites, sem relógio, sem termos, sem o “ ter” e o “querer” na essência primária do universo, deitado, numa nação de mortos.

(yzzy Daniel Myers)

"Arte Poética" - Para Paulo Sabino



revirar o
íntimo do impossível
à procura

de um verso.
no mínimo, dar-se à
loucura,

à tentativa, mas não
enganar o
coração:

abrigar o
âmago do infinito...
alegria pura?



               Adriano Nunes 



Não lembro onde pus
Colhi pra soltar de noite
um punhado de luz



Alvaro Posselt 

o emigrante


Antonio Pinto L                


quantos passos perdidos,
por terras desconhecidas,
quantos sonhos perseguidos,
por quantas ,e quantas vidas
x
quanta esperança em encontrar,
no final de cada estrada,
força, para continuar,
em frente, a proucura de nada
x
talvez seja só invento,
o tal lugar encantado,
e só exista ,no pensamento,
não se encontre em nenhum lado
x
andar sempre sem fim, proucurando,
de esperança no peito, aninhada,
sei lá, quantas vezes chorando,
sempre a procura ,de nada


Pensaventos



– A sensatez mastiga água pra não engolir rios.


 Evandro Souza Gomes  

... Secreções de Baphometh ...




Tudo que Existe está em Relação À... Poder???
Do lixo Neural... Não há Lixeiro... Emana Gás!!!
Gases Relativos às Secreções do “Ser”...
... Do Lixo secretado... Vanglória se Faz!!!

Uma Alma gasosa... Volitiva... Intangível...
... Espírito Volátil... Penetrando tudo que é Sólido!!!
No Poderoso Impenetrável... Um Sentimento Frangível...
... Vil Lixeiro de Desgraças... Com Prazer tão Mórbido!!!

Um escarnecedor de D’us... Quebrantou-lhe o seu Poder!!!
Resgatou-lhe do Lixo... Nefasto domínio de Baphometh!!!
(Disse-lhe):
“Não será nos Gases de Enxofre que irás sofrer!!!”

Tudo que Existe está em Relação À... Tanto Faz!!!
No Exílio... Nos Latifúndios da Sétima Solidão???
Onde o Nada Existe??? E a Consciência Gasosa se Faz???

Gutemberg de Moura


"Rick's Cafe":


De Eudoro Augusto, 

O esquivo e atarracado espião.
Evidente dedo-duro.
Sua muito. Parece húngaro.
Fala cuspindo.
Olhos apertados
de onde escorre lenta
a mais nojenta lama do nazismo.
"Você me despreza, não é?"
Com a voz mais seca
que minha boca permite
com meu timbre mais bogart
respondo rápido como um tiro.
"Rapaz
se por acaso alguma vez
meu pensamento esbarrasse em você
certamente o desprezaria."




bem do meu lado fingem

dormir

personagens

da última página

do último livro

que li:- um truque

para que não os esqueça



 Nydia Bonetti    





Que mundo cão!

Junto com uns gatos pingados

alguns ratos de porão



Alvaro Posselt   

contrato




quero a pérfida palavra
o sumo, a acidez da verdade
e no mais,
não quero nada
a não ser a essência
do último trago
e se isso significa veneno,
não me importo;
prefiro a morte rápida
a ser enganada de forma
homeopática
pensas: fazendo assim talvez
ela sofra menos...
saiba: este teu jeito absurdo
de entender o mundo
desacata meus sentimentos
e não me poupa a fragilidade;
compulsiva-me sim, a odiar-te
bem mais do que te amei.

Lúcia Gönczy

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Sombra aquática pelas auroras do meu bem


Sem nem quem ser
Seria são parecer

Livre navega e cega qual
Mar, luar dos doutos:
Hoje sua verve isopor

Artificial bacanal se insinuou
Sina.

Agora aquela semente plena
Refreia o poema como quem
Sem nem amor, nem
Flor
Adere ao jardim etéreo
Próximo ao cemitério
Da noite que brotou.

O sol se põe, sim se põe
E como o dia navega,
Navego, estóico, fluo
Nevo, nego, nervos
Sumo sacerdote do ego

A teoria me contempla o chão
E pela ode a mim encontro o pão
Relembro pontos azimutais
Nos carnavais da luz
Quais seres sem paz
E naus pelas páginas sem sal

Indiferente ser indifere
Entre os iguais felizes finais
Pelas searas bestiais
Da ignorância e do clichê.

Revolvo meu grude hipnótico
Na catarse dos idos aparelhos
Simbióticos e revisito a moral
Inspirada na cratera da habilidade
Literária

E a prática reumática
Do léxico adulador.

A estrelas aprenderam comigo
A bailar em brilhos fugazes
E coloriram o céu noturno
Com sua solidão prepotente

Os olhares artificiais dos holofotes
Não logram lágrimas

Ao saborear a maestria
Da minha pena serena

A narrar os inconscientes
Para estruturar os sonhos
Em realizações consistentes
Dos patamares semoventes
A alavancar o linguajar das gentes

Falar um dia do verdadeiro amor

A única beleza possível.

anderson carlos maciel,


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Camarada Comissário

Não, ele apenas deu uma gota minúscula do que é estar do outro lado.Não , o judeu não obrigará o alemão levar outro alemão para dentro de um forno crematório.Não senhora , ele o Juden também não ficará brincando com a pistola estando diante de uma vala comum com  centenas de corpos .O nazista  andará a pé até algum gulag na Sibéria ou voltará pra sua Alemanha.(depende em qual inverno ) deve  ele lembrar de Deus e orar para que o oficial soviético  e seus soldados não tenha passado por aldeias onde mulheres e crianças  russas, chacinados pelas ss e a sua gloriosa werchmacht..sua esposa não será  a lembrança de mulheres que já não existem mais .Nem a russa ou até mesmo a alemã.Que sorrirá com todos os lábios por um chocolate e um cigarro.Passará o soldado, murmurando, que só cumpria ordens e caso não as  tivesse cumprido ,teria sido morto, um manto de vergonha foi o derradeiro legado de hitler para a nação alemã.As vísceras de Dresden e Berlin urram para os céus e não existe uma única fresta para respirar ,para ressuscitar dos escombros, das cinzas .O soviético tenta não ver vinte milhões de pais , mães ,filhas, netos e mesmo  assim, judeu que é, não mata o alemão e dá o seu rifle a um fantasma ,que aos poucos retorna do mundo dos mortos e esse Herr viverá para encontrar no meio dos escombros, o que restou de luz nos olhos de sua família. Bom, o oficial do campo e os ss devem estar pendurados dançando por aí enquanto os cossacos tocam seu acordeom e  sua balalaica . Guerra é arame farpado rasgando a alma , cortando sonhos e abrindo com a dor outros olhos que jamais verão campos verdes e floridos até brotar alguma criança no útero estéril de tanto levar chutes de sombras que invadem amanheceres, uma gota de sangue molhando um sorriso no olhar .Olhos negros , castanhos , azuis de sonho rasgados de esperanças suando pétalas numa flor tocando o lábio do amante , esposa que espera no silêncio as sombras dos uivos vazios cansarem de açoitar .Ela um dia será sol novamente . ..Nada do que é humano me é estranho

Wilson Roberto Nogueira

P.S Em memória dos milhões de mortos na grande guerra patriótica  e da Schoah .  .

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Mozart, 1935

Poeta, fiques sentado ao piano.
Toques o presente, é hoo-hoo-hoo,
É shoo-shoo-shoo, é ric-a-nic,
Sua zombaria invejosa.

Se lançarem pedras sobre o telhado
Enquanto praticas arpejos,
É porque eles carregam pelas escadas
Um corpo em trapos.
Esteja sentado ao piano.

Esse lúcido souvenir do passado,
O divertimento;
Esse sonho arejado do futuro,
O concerto não concluído. . .
A neve está caindo.
Atinga a corda penetrante.

Seja tu a voz,
Não tu. Sejas tu, sejas tu
A voz do medo raivoso,
A voz dessa dor assediadora.

Sejas tu esse som invernal
Igual a um grande vento uivante,
Através do qual a tristeza é liberada,
dissolvendo, absolvendo
Numa reconciliação imaginária.

Podemos voltar para Mozart.
Ele era jovem, e nós, nós somos velhos.
A neve está caindo
E as rua cheias de lamentações.
Sentes, tu.


Wallace Stevens/ tradução Ricardo Pozzo



Mozart, 1935

Poet, be seated at the piano.
Play the present, its hoo-hoo-hoo,
Its shoo-shoo-shoo, its ric-a-nic,
Its envious cachinnation.

If they throw stones upon the roof
While you practice arpeggios,
It is because they carry down the stairs
A body in rags.
Be seated at the piano.

That lucid souvenir of the past,
The divertimento;
That airy dream of the future,
The unclouded concerto . . .
The snow is falling.
Strike the piercing chord.

Be thou the voice,
Not you. Be thou, be thou
The voice of angry fear,
The voice of this besieging pain.

Be thou that wintry sound
As of a great wind howling,
By which sorrow is released,
Dismissed, absolved
In a starry placating.

We may return to Mozart.
He was young, and we, we are old.
The snow is falling
And the streets are full of cries.
Be seated, thou.

Wallace Stevens

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

PRISÃO




Quero dormir
amar
dizer coisas do mar
do ar

Mas estou sozinho em meu quarto
em meu sonhos
prisão domiciliar

Queria rever estrelas
cadentes ou frias
ter alguém para falar
que me dói
corrói
destrói
talvez alguém para amar

Mas estou sozinho em meu quarto
vendo a noite passar
o sono se esvai em lágrimas
estou só
e é assim que será

Retalho de esperança
me agarro a fragrância da infância
só pra ter com o que lembrar

Eremita urbano
sou solitário ser insano
cercado de meus fantasmas

estranho ser humano
na noite calada a pensar
como Carolina ( da janela )
que não viu o tempo passar

               
Bruno Junger Mafra

BRINDE À RICOLETA



se a incerteza faz com que se trilhe espinhos
no ouvir que entorta o singular do ser
lamber carinhos em aromas mergulhados
entornam rejeição no ato de empreender

se a nitroglicerina em fios de telefone
polaridades em resmungos sem tesão
foi canto, no entanto, perdeu compaixão
provocam o sentir sem força que se dome

você que se articula em pronta sedução
no abrir e fechar portas, múltipla explosão
ao ser distante é fácil não compor carinhos
em corpos escondidos em certeiro vão?

ah, metida abelha em noturnos vendavais
tentando remover coturnos e metais
bendiga o rumo a decompor os tempos tais
desaparece – é águia – sem dizer dos ais

você, insanas as palavras que profana
e doces as agruras que sem tino emana
fraturam os cristais de vida entrecortadas
e coisas sagradas são sílabas passadas?

ao esconder meu pranto em outro colo, é em vão
a profusão ao contentar-se então que vê
você, inquieto ser - interna mutação
que em jogo afunda no sentir-perder tesão

você, homem distante num moinho andante
de pavio curto é feito pra queimar os dedos
se rotas fiscais parecem com torpedos
são frágeis compassos de um andante aos beijos?

você a rejuntar no dar acabamento
desbravador premente de um amor partido
é tipo cadafalso que resulta em trincas
abandonado escrito que em grito se estica

você foi rendilhado e colorida fita
e descortina um ser que entrega seu poder
entica o sentimentos de quem te medica
em colo de mulher no seu próprio conter

você complica o jeito de cumprir natais
de refazer a vida ao descuidar demais
você, impaciências que reverterão
desastres se não for só sedução?

se autoestima partir de enorme esforço
no preparar o próprio pão ao ser composto
você que veste mal no expor o próprio couro
é noves fora ao desvalorizar o ouro

você, um sedutor que no viver machuca
no misturar de vozes, de peles ao cantar
de gota em gota a respingar entalhes
é escadaria sem degrau nem patamar

você, um louco em marcas do estar sozinho
um laço a recompor amor em qualquer ninho?
melhor rasgar bordô que rastejar sangrando
e destelhar ao vento no canto de Orlando

não quero ser aquela que se estraçalha
se ao estruturar, a vida sempre perde a calma
se ao compor mil páginas se sentir vencida
destemperando ao revelar-se enrijecida

há féretro que aporta de um navio advento?
guerra sem armas que fermenta e é tudo ou nada?
no cais ao desfraldar a caravela ao vento
perder-se-á ao descuidar da alma amada

bandeira brasileira em corpo embalsamado
tem cores do Rio Grande em meio a lambrequins
envolto neste pano, cupins de antepassados
enterrarão a dor, que tanto foi, enfim.

 - Marilice Costi - 2009





quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Solstício termal



Quais fractais termais
Sem ais
Ou serão refrão do céu
Em tais
Carnavais.

Sei que sei e sou
E vou além

Pois não danço
Não rio,
Acima

As letras certas feitas
Fornecem sóis
Aos sós soem sair
Do mar em que naufragam
O sentido

Pincelo um elo
Amarelo por terra
Na amarra que me jazia

Teus passos bifurcam atalhos
Por assoalhos do que fui

No sul do verbete em itálico
Se encontra
Um conceito

Eleve o pensamento
Ao alto do ego
E contemple a si

Sem sal.

Anderson Carlos Maciel

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

CONTEMPLAÇÃO DO MORTO


Observo o morto.
Ainda ontem ele pegava ônibus,
pagava contas, fazia planos:
férias no campo, carro zero
ou talvez um novo amor.
Observo o morto. Os olhos que tanto
se moviam, irrequietos,
estão parados
atrás das pálpebras. Enxergam o quê?
Os ouvidos até há pouco
curiosos, estão agora surdos,
escutam o nada ou, quem sabe, sinfonias.
A língua, outrora tão falante,
emudeceu. Sentirá qual sabor?
As mãos, vejam as mãos. Enormes, brancas, paradas.
Postas no peito, já não apalpam seios,
já não podem apertar
outras mãos, ou bater no filho
desobediente, que assustado
pouco chora. Os pés, reparem
os pés, que tanto caminharam,
correram para pegar banco aberto,
fugir da chuva ou se encontrarem
furtivamente com outros pés. Os pés
imóveis dentro dos sapatos novos
agora já não dançam, já não podem dançar.
Observo o morto,
absorto. O rosto.
Até esses dias este rosto
me sorria, me contava anedotas,
me falava de mulher, futebol, da vida
que precisava dar um jeito, ai, precisava.
Observo o morto. No rosto
subitamente máscara um quase esboço
de sorriso. A morte é desconfortável
não para ele, mas para nós, os vivos.
Observo o morto. Ele até que está bem
dentro do terno, dos sapatos, dentro
do caixão – melhor, imagino, do que quando criança
no berço. (A criança quer sair
do berço. O morto não.)
Observo o morto.
Não as flores, as velas, os parentes, os amigos,
as conversas sussurradas.
A vida não me interessa agora. Me interessa
somente o morto. Observo-o,
absorto. Será que de algum lugar
ele me observa também?

Otto Leopoldo Winck