segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Advérbio de intensidade terminado em mente


Devia ser umas onze horas. Ligou o chuveiro e tirou a roupa bem devagar para que a água tivesse tempo de esquentar. Entrou de uma só vez, viu a tinta preta dos seus cabelos escorrendo pelo corpo. O mundo é mesmo uma merda. Ela não queria tomar banho, só ficar ali. Sentou no chão e a água começou a bater absurdamente quente nos seus joelhos, deixando-os vermelhos. Masoquista. Como as músicas que ouvia para ficar mais triste. Como roer as unhas até sair sangue. Unhas. Gostava delas carmim como estavam porque parecia mais puta, logo mais despudorada e confiante e moderna e confiante e feliz. As putas deviam ser felizes. Desespero. Procurou algum resquício de ilusão. Gostava de se iludir, de sentir-se falsamente protegida por alguém que pouco se importava com a sua existência. Existência. Se tivesse uma banheira, cortaria os pulsos e morreria afogada na água vermelha, como naquele filme. Começou a rir sem controle, porque na película a menina suicidava-se ao som de alguma coisa da Mariah Carey. Ou seria Whitney Huston? Estúpido, not for her. Ela queria morrer com estilo. Edith Piaf, talvez. Então pensou nas manchetes dos jornais baratos: jovem desiludida corta os pulsos em uma banheira ouvindo Piaf. Precisava de um papel para escrever um bilhete para alguém. E não podia ser um bilhete qualquer, mas sim, um como aquele do Almodóvar. Espero que nunca me entenda, porque se compreenderes estarás tão desesperado quanto eu. Alguma coisa assim, não lembrava direito. E tinha aquela cena com vinil, Ne me quitte pas e uma frase qualquer bonita. Seus joelhos estavam ardendo. Desligou o chuveiro e saiu. Não tinha uma banheira.


LETICIA FONTANELLA

leticiafontanella.blogspot.com

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