sábado, 11 de outubro de 2008

Aphaville e a Cidade Desconhecida

Estava decidido. Louise se mudaria para longe de Alphaville. E de fato há tempos vinha se mudando aos poucos. Não podia mais com aquela gente que lhe exigia tanto. Tudo ali requeria uma geometria exata e tudo o que fazia parecia, aos olhos de todos, algo tão diferente do esperado. Olhavam-na assim como se a algo raro de tão incompreensível e sua produção espiralada ou circular eram objetos quase não identificados pelas convenções. Não podia repetir quaisquer de seus atos, pois nada se adaptava ao formato local, tendo ela sempre que criar uma nova ação na esperança de se fazer entender. Sentia-se então quase estrangeira, mas lembrava-se de um lugar tão diferente em sua infância, e para lá ia sempre que a vida lhe deixava de sorrir.

Começara nos fins de semana. A distante cidade era um recanto com bosques, rouxinóis e tudo o que torna uma paisagem perfeita, parecendo um dos desenhos que entregara à professora do jardim, há muitos anos. Usando o balanço do parque, seu corpo se movimentava em sincronia com seus pensamentos e com o movimentar da folhagem. Ali não precisava explicar nada, talvez pela simplicidade das pessoas, que não lhe exigiam grandes formalidades. Tudo era aceito e eram raros os tons cinzentos e as formas retilíneas. A cor da infância finalmente voltara, sobrepondo-se ao cinza em que vivera até agora. Via uma qualidade lúdica na paisagem, as flores e árvores animavam-se à sua passagem, a cachoeira fria era mesmo agradável e podia compreender tudo o que lhe cantavam os pássaros.

Desvencilhando-se de tudo, mudava-se para aquela terra sem nome, que sempre conhecera. Nada ali era adverso e todos lhe sorriam como se nela também reconhecessem algo familiar. E assim viveu, por muito tempo, ao sabor das ondas de harmonia que emanava o lugar. Mas se em sua crença tudo seria sempre assim, alguns fragmentos obscuros, que recordava em vislumbres e sem desejar, insistiam em aparecer. E subitamente um inseto tão estranho e cinzento invadiu o cenário antes conhecido. As asas eram retorcidas e ela podia quase ver pequenos olhos encarniçados a lhe espreitar. Em vão procurou se livrar da criatura desconcertante que a perseguia por toda parte. O antes agradável clima da primavera trouxe um vento inóspito e numerosas nuvens escuras se reuniram sobre as árvores. Tudo acontecia tão rápido e ela sentia que perdia tudo. Aquele lugar que parecia lhe pertencer se esvanecia sob os olhos e novamente ela sentia que Alphaville, a qual já havia quase esquecido, ressurgia mais rapidamente do que podia suportar. Toda harmonia que vivera era deixada pra trás, como se nunca houvesse existido realmente.

A contragosto, Louise estava de volta. Não pôde imaginar que viveria ali novamente, junto aos seres autômatos que jamais puderam enxergar as verdadeiras formas e cores do mundo. De nada adiantaria lhes falar de tudo o que vira e sentira, pois estavam condenados a crer que seu mundo era o verdadeiro, e o dela, uma ilusão que somente os remédios curam. Quisera ela que inventassem cápsulas de ingresso à cidade desconhecida, para ministrar àqueles que jamais teriam uma chance de visitá-la. Quanto a ela, bastaria burlar os enfermeiros, escondendo seus remédios, e retornaria espontaneamente à cidade desconhecida
Juliana Correa

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