Aproveito para divulgar UM dos contos que escrevi na
antologia Então, é isso?
Grace acordou cega.
Abriu seus olhos como sempre, mas não viu o teto de seu
quarto, que era pintado de céu noturno, com aquelas estrelas e planetas que
brilham após um tempo de luz incidindo sobre eles. Fechou seus olhos de novo,
imaginando que estava ainda em um sonho. Mas quando os abriu novamente,
lentamente, a escuridão teimou em fixar-se ao seu redor.
Apavorada, gritou pelos seus pais. Eles a vestiram
rapidamente, e a levaram ao hospital de Olhos. Lá, o oftalmologista usou sua
lanterninha e verificou que suas pupilas não reagiam à luz.
Fizeram uma anamnese. Descobriram que há algum tempo sua
acuidade visual estava piorando. Primeiro sua visão periférica. Ela tinha que
voltar seu rosto para poder realmente enxergar o que estava ao lado. Depois a
sua eficiência visual foi diminuindo, e ela começou a andar mais devagar,
observando mais as coisas para não tropeçar ou cair. Mas só agora estava
falando isso. Primeiro porque não queria preocupar os pais, segundo porque
achava que era simples stress, e que logo passaria.
Outro dia, enquanto estava na sala de espera e sua mãe havia
ido ao banheiro, ela sente um cheiro estranho que se aproxima, e uma mão
acaricia seu rosto dizendo: “tudo ficará bem”. Aquela sensação de uma mão
estranha permanece em seu rosto.
Marcaram-se novos exames.
Ela voltou para casa, mas sua vida passou a ter novas visões
literalmente. Os caminhos tão trilhados, do quarto para a cozinha ou banheiro
passaram a ser labirintos obscuros e trincados, cheios de armadilhas. Tomar
banho, hábito tão diário e natural, passou a ser um estranhamento constante.
Para Grace era como se fosse outra mão que estivesse limpando seu corpo.
Alimentar-se. Beber água. Torturas constantes em que
precisava - pessoa tão independente que era - de outros para a ajudarem.
Aprendeu o sistema de relógio: arroz às seis, bife às três, batatas meio-dia,
feijão às nove. Grace que tinha tanta mania de limpeza e que lavava suas mãos
logo ao entrar em casa, agora tinha que enfiar um dedo em seu copo para sentir
aonde a água ou suco chegava. Lavar louça! Tanto quebrou que quase pensou em
comprar louça de acrílico ou plástico.
Vestir-se. Outro terrorismo da cegueira. As meias são as
mesmas? As cores de roupa combinam? Percebeu que certas roupas que usava antes
com frequência (segundo a família) lhe eram agora “nojentas” ao tato.
Recusava-se a usar aquele vestido tão batido de outrora (hoje tão duro, tão
seco, tão arranhoso no corpo). Mas a maciez de outro, que ela nunca usava antes
lhe agradou tanto que preferiu usá-lo agora, pois o Sentia abraçando seu corpo,
num aconchego que ela tanto necessitava. Uma segunda pele protetora.
Com o tempo ela tenta se lembrar de como é seu rosto, mas
percebe que ele se desfocou e permanece como nebulosa incógnita. Desorientada,
um pouco apavorada, pede para sua mãe que a descreva.
Grace, seu rosto é gracioso e feminino. Seus olhos
amendoados castanho- escuros são doces como mel, suas faces rosadas são maçãs
de desejos, há uma marquinha de nascença entre seus olhos -, e o seu rosto vai
se desenhando com as palavras de sua mãe.
Os exames médicos foram rareando. Essa doença estranha,
tratada apenas como um caso extraordinário. Chamavam-no: “O estranho caso de
Grace Uei”. Ou: “a cegueira de Grace Uei”. Psicólogos, oftalmologistas,
cientistas, pesquisadores do mundo todo já haviam manuseado (literalmente)
Grace durante este escuro ano.
Grace acorda para mais um dia. Abre os olhos e .. surpresa!
As estrelas e planetas a saúdam, como se nunca tivessem saído dali. Ou como
tivessem apenas feito uma rotação ou translação e tivessem voltado ao ponto de
partida. Ela olha, extasiada, suas mãos, seu quarto, o caminho até o banheiro.
A alegria de poder rever todas as coisas tanto reconhecidas pelo tato. A
surpresa de ver as mudanças na casa... isso tudo foi enchendo Grace de uma
graça suprema.
Ao entrar no banheiro corre ao espelho.
E se assusta.
Uma criatura a encara. Uma pessoa com olhos de enxofre.
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