Lá em cima, bem em cima, onde o ar quase não existe, onde o
vento é apenas uma brisa e as nuvens brincam de ser azul, repousa deus. Seu
olhar de divina celestina vagueia e vagabundeia, horas fixa-se no horizonte,
horas no amigo ao lado. Nuvens enroladinhas como chumaços de algodão escondem
suas orelhas, se é que as tem.
Seu amigo, o anjo descaído, tem os olhos inquietos e talvez
pela inquietude sejam assim vermelhos e brilhantes como rubi. Ao contrário de
deus, olha com frenesi de um lado a outro. Sua nuvem, tão fofa e macia,
difere-se apenas pela altura onde se encontra, um pouco mais abaixo. Seu olhar,
além de vermelho, é inquiridor... interrogativo... está sempre com este
olheirão para deus, que pouco se dá deste olhar. O anjo descaído há muito
desistiu de tentar entabular uma conversa, deus surdo está, desde o sexto dia,
quando deu por finito seu labor.
O Anjo, às vezes
cheio de tédio, apóia o queixo na mão, enquanto o cotovelo é sustentado pelo
joelho e fica pulando os olhos de uma palavra à outra que vêm saltitando da
terra dos homens de boa vontade. São palavras lindas, feias, com amor, com
ódio, azuis, vermelhas, coloridas às vezes, com lágrimas, com risos, roídas,
inteiras e aos pedaços, bêbadas e lúcidas, miseráveis muitas, esfomeadas um
tanto, vêm as chorosas de dor e as de rosa cor, as que vêm rápidas como
relâmpago e as que vêm se arrastando como o minuto das horas de dor. Por cima
de umas vêm outras, ensimesmadas, separadas, as vezes juntas, tão juntas que
parece uma só, aimeuSãoJesusCristinho... O Anjo descaído girou os olhos na
órbita, soltou um enorme suspiro, esticou o olhar para deus e nada viu, olha
para terra e olhar e pensar é uma coisa só. ¨Nesta cumbuca é que nunca mais vou
enfiar minha mão”.
Jacira Fortes Tristão
Um comentário:
Interessante a composição, a pontuação e a formulação de espaços oníricos para a sedimentação do inconsciente coletivo curitibano numa caverna de idéias mais profunda do que aquela formada pelo televisão e pelas conversas do vulgo. Afinal a dualidade invocada se presta a dialogar historicamente no inconsciente cristão do presente século. Esse mesmo inconsciente é o que devemos evitar devido a natureza pagã de nossas exclamações esotéricas por vezes. Toda essa composição irracional me escapa em verdade. Creio na forma e no conteúdo, mas não creio naquilo que eu não posso ver em matéria de resultados práticos dessa invocação mística. Muitos se tornam ateus justamente por esse viés histórico crítico filosófico da junção da inteligência do homem com as suas práticas mágicas,segundo os critérios empíricos da sociologia.
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