Lá em cima, bem em cima, onde o ar quase não existe, onde o
vento é apenas uma brisa e as nuvens brincam de ser azul, repousa deus. Seu
olhar de divina celestina vagueia e vagabundeia, horas fixa-se no horizonte,
horas no amigo ao lado. Nuvens enroladinhas como chumaços de algodão escondem
suas orelhas, se é que as tem.
Seu amigo, o anjo descaído, tem os olhos inquietos e talvez
pela inquietude sejam assim vermelhos e brilhantes como rubi. Ao contrário de
deus, olha com frenesi de um lado a outro. Sua nuvem, tão fofa e macia,
difere-se apenas pela altura onde se encontra, um pouco mais abaixo. Seu olhar,
além de vermelho, é inquiridor... interrogativo... está sempre com este
olheirão para deus, que pouco se dá deste olhar. O anjo descaído há muito
desistiu de tentar entabular uma conversa, deus surdo está, desde o sexto dia,
quando deu por finito seu labor.
O Anjo, às vezes
cheio de tédio, apóia o queixo na mão, enquanto o cotovelo é sustentado pelo
joelho e fica pulando os olhos de uma palavra à outra que vêm saltitando da
terra dos homens de boa vontade. São palavras lindas, feias, com amor, com
ódio, azuis, vermelhas, coloridas às vezes, com lágrimas, com risos, roídas,
inteiras e aos pedaços, bêbadas e lúcidas, miseráveis muitas, esfomeadas um
tanto, vêm as chorosas de dor e as de rosa cor, as que vêm rápidas como
relâmpago e as que vêm se arrastando como o minuto das horas de dor. Por cima
de umas vêm outras, ensimesmadas, separadas, as vezes juntas, tão juntas que
parece uma só, aimeuSãoJesusCristinho... O Anjo descaído girou os olhos na
órbita, soltou um enorme suspiro, esticou o olhar para deus e nada viu, olha
para terra e olhar e pensar é uma coisa só. ¨Nesta cumbuca é que nunca mais vou
enfiar minha mão”.
Jacira Fortes Tristão