quarta-feira, 28 de março de 2012

terça-feira, 27 de março de 2012

Abrimos o livro como a uma janela

uma pálpebra que se ilumina a novas luzes
e diante do olhar estranhando o familiar
espelhos estilhaçados sob os pés descalços.

Na busca pela identidade passamos por sombras perpétuas
de Hiroshimas íntimas em sopas de cogumelos.

Formas dançarinas da leitura de mundos que sangram
sobre teias elétricas que queimam nosso caminhar.

Fragmentos de cristais sem valor eletrizando o nada dos nossos passos.
andamos a esmo, perdidos nessa leitura.

No barro das palavras tentamos construir nossos ídolos e seguimos adiante.
Pedaços dessa anatomia de Golem se desprendem na tempestade do desencanto .

Palavras paridas de imagens queimam e evolam-se, reencarnando em nuvens que espalham o sêmen translúcido na relva a sorrir e a tudo presencia a pedra da palavra na pele do sonho.

Voltamos a dormir no desconforto do silêncio inundados de dúvidas que se debatem nas nossas entranhas. Mas tudo são meras palavras que voam sem rumo sobre nossas cercas invisíveis de arame farpado.



Wilson Roberto Nogueira

sábado, 24 de março de 2012

contos da esquina

II


aê, garçon, rola uma pindureta?
eu já lhe disse, meu senhor, cê lambe o chão, faz favor.

- Rasgar meu diploma?
- Ué, bicho, seria um ato político. Real, manja.
- Mas, cara, é a única alforria que tenho pra ser um homem civil.
- Larga dessa, mano. Transcenda. Você muito quer o poder, qu'eu sei.
- Vamu trocar de assunto, meu camarada, e beber mais uma?
- Cê paga?

Giuliano Gimenez

quarta-feira, 21 de março de 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

Anthropocetáceo

Igual a
personagem
desconfia
do ator
que é,
em voz
e carne,
ao remover
a primeira
camada
de maquilagem,

anthropocetáceo
emerjo,

do frívolo
mar
espesso
das
convenções
sociais.


Ricardo Pozzo

sexta-feira, 16 de março de 2012

ABBA

platônico

ele vive Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, no lugar mais intocável por minhas mãos. traçando labirintos, fazendo vendavais, recitando García Lorca lá onde não faz sol, pois os olhos não alcançam. Lá de onde surgem todos os meus delírios. não entendo como convive com a histeria da confusão de cores e explosões por segundo que ocorrem Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, acredito que nada disso faça muito barulho e que ele seja o causador dessa desordem. enquanto ele fala sobre o mundo inteiro em todos os tempos: presente, presente e presente, a folha branca que era O Outro Lado do Espelho da Minha Mente vira um carnaval que pula aqui pra fora. sem fazer muito barulho pois ele gosta de música. Por isso suporta, por ser uma bagunça histérica que não faz muito barulho. então pode ouvir sua música enquanto bagunça e anima a minha vida.

ele vive Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, no lugar mais intocável por minhas mãos. Mas um dia eu chegarei lá.

Priscila Lira

segunda-feira, 12 de março de 2012

uma espécie de gregor samsa

a noite lá fora é distinta
da noite maníaca e cheirosa dentro da xícara.
mas a aranha a passear os móveis, mas os grilos
que parecem saltar dos meus bolsos  
nivelam (ou não nivelam?) as duas noites.


então imagine que fosse
pó de café a própria terra, insone de insetos,
e que fora coado com terra, inchada de sombras e barulhos,
o café na térmica.


é o mesmo o princípio
da cafeína e dos grilos.


a xícara, com sua borra de açúcar, dorme dorme
profundo
(só quando se quebram
as coisas por um instante despertam).


partido em cacos,
sorvi toda a noite das xícaras:
é bem possível que eu não durma.
vou latejar na madrugada como uma estrela e um inseto.


Rodrigo Madeira
http://rodrigo-madeira.blogspot.com/

quarta-feira, 7 de março de 2012

Carta a Antínoo

Que me importam o império as vilas
as efígies nas moedas se o teu cheiro
ocupa ainda cada canto angular
da arquitetura
mas teu pescoço teus pés teu tórax
já não os habitam
e as águas do Nilo não permitem
que este teu cheiro
agora se evada se exale e me excite ou exalte
uns dizem suspeitar que eu ordenei tua morte
outros que tua influência se tornara indesejável
nunca houve lugar para Eros
entre as intrigas de corte
eu já não me lembro tua morte talvez
a tenha ordenado quiçá tenha sido
castigado por meus inimigos
os mais cruéis sugerem que o ato
fora uma fuga tua dos meus cafunés
das minhas mãos geriátricas
não sei não sei tua lembrança
ocupa o espaço de todo o resto
que eu poderia agora memorizar
ordens execuções missões diplomáticas
a fundação de cidades já não me alegra
se tu já não serás um dos cidadãos
as revoltas de bárbaros tão-só
me entediam
se tu não me acompanhas nas campanhas
divinizar-te é consequência lógica
doravante estarás no panteão
entre aqueles que agora
por um motivo a mais invejo
se teu exercício de natação sem volta
foi mesmo sacrifício ou autoimolação
eu me pergunto que deus te merecia
mais do que eu
dizem as boas bocas pelas ruas de Roma
que eu chorei por ti como uma mulher
como se eles pudessem distinguir o gênero
das águas salinizadas
Pancrates de Alexandria comparara
uma flor-de-lótus a ti e não o contrário
e com isso ganhou meus favores
tu eras o parâmetro
de todos os sistemas da simetria
Antínoo ainda que eu mandasse a Bitínia
ser varrida vasculhada
jamais outro com teu pescoço
teus pés teu tórax
tu eras o príncipe das belugas
Antínoo tu foste meu antinão


Ricardo Domeneck, Berlim - agosto de 2011.

Antínoo (112 - 130) foi o favorito do imperador romano Adriano. Natural da Bitínia (norte da Ásia Menor, hoje na Turquia), é provável que Adriano o tenha conhecido durante uma visita à Bitínia e que o tenha levado consigo. Antínoo era membro do círculo mais próximo do imperador, que era 34 anos mais velho que o rapaz. Em outubro do ano 130, durante uma visita ao Egito, Antínoo morreu afogado no Nilo, mas as circunstâncias em que o evento ocorreu são pouco claras. O imperador mais tarde ordenou a divinização do jovem.
nota do autor


Poema extraído de Ricardo Domeneck, no livro "Ciclo do amante substituível" (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, com a autorização do autor!

terça-feira, 6 de março de 2012


É com a despedida do sol que os ratos jorram dos bueiros desesperadamente. Não podem mais queimar as patas com o concreto quente, não podem mais ficar cegos com a luz insuportável. Surgem exemplares de várias castas – há os ratos filhos de outros ratos, que apesar da linhagem pura, são os mais sujos, e os bastardos, que podem ser filhos de leões ou cavalos de carga, mas não se intimidam com o ambiente não familiar e vão compartilhar com os outros a dor que é não se encaixar muito bem onde nasceu.

Não há mais aquele holofote gigante para apontar qualquer movimento deselegante. Não há mais as senhoras e famílias com crianças e pessoas decentes lançando seus olhares inquisidores sobre todos os sem padrões. E mesmo que haja, os ratos são mais numerosos. São maiores. A pequena sombra concedid...a miseravelmente pelo sol cresce e toma todas as ruas.

Então o mundo é deles. O opressor agora – Ah, doce vingança! – são eles: os ratos. Bêbados, chapados, trincados, espumando de loucura. Todos em sua própria sintonia, diferentemente dos leões e cavalos. Todos fazendo transparecer seu interior, ao invés de escondê-lo atrás de uma boa aparência, morais e discursos preconceituosos. Esfregam merecidamente sua individualidade na cara da parcela disposta ao lado direito da balança social.

Entram e saem de suas tocas sujas, reviram o lixo, brigam entre si, bebem, fumam, cheiram, trepam, comem qualquer porcaria barata – alguns devoram as baratas propriamente ditas – que conseguem comprar com suas poucas moedas ou acham por aí esquecida no canto de algum poste de luz.

Então a manhã ofusca sua visão, o chão começa a ficar morno, o ar torna a se mostrar cada vez mais careta. É hora de voltar para os esgotos e esperar que a noite chegue mais uma vez. Serão reis novamente.

("Estudo sobre os Ratos")

Matheus A. Quinnan