Lembro do arrozal rajado de tigres em que adormecia a olhar o céu: que minha única tarefa, nesse mosteiro com neve pelo telhado, é varrer os cacos do buda para debaixo da chuva. Daqui escuto a missa das melancias. Há quem no silêncio do poço do mosteiro. Se mirar dessa janela se vê a ciranda das andorinhas, pois agora é quase amanhã. E há o louco que atira pedras na vidraça. O sacerdote que vem nos contar, todos os dias de finados, que sonhou que rolava uma imensa cabeça ladeira acima e que, lá no topo, a cabeça voltava a descer e ele, o sacerdote, recomeçava o eterno castigo. E assim, nessas enevoadas tardes observo, dos livros da biblioteca, o imóvel. A madre superior, sempre que percebe que a cárie fede em sua boca, ordena o castigo abrupto: bebam desse mar gelado o sal que ele, o mar gelado, é, nada mais, nada menos, que a vossa própria sede. Depois ordena que descansamos as mãos na ária da lira. O sacerdote, que sonha eternamente que rola eternamente uma cabeça morro acima, pede que tocamos, no rádio, dentro da névoa, quartetos de Béla Bartók. O que reclamamos muito, pois sabemos, a pele da música, em sua essência, não me lembro se foi Schopenhauer quem falou, é intocável, e quartetos na névoa é um mistério insuportável. Eu gosto muito é de ler, dos livros proibidos, histórias de mulheres que, à beira do Saara, bebiam, da moringa, a água. Depois, sob severos açoites da madre por ler livros proibidos, adormeço e sonho que beijo a neve dos cabelos daqueles velhos da Boca Maldita. De um deles carrego a dentadura cravada no flanco, pois ele me chupou a coxa, o brinco, a barata do esgoto. E assim são os dias no mosteiro, num filme não iniciado de Federico Fellini, com pomar de pêssegos e rosários de farpas, amém.
Lídia Lessa
Um comentário:
Mais uma vez somente uma quadrinha,
só e insuficiente, feita com pressa,
vem saudar essa prosa-ladainha
liquidificada por Lídia Lessa.
Ivan
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