quarta-feira, 21 de outubro de 2009

por quê, meu filho


Eu comecei a ter fome. Foi assim, pai, que tudo começou. Pé de moleque no bar da esquina não matava as bichas. Não mais. O senhor sabia que cedo ou tarde eu ia partir por essa bandas aí acima com o peito aberto de cicatrizes ao vento, desbravando o morro de Vera Cruz. O que foi que encontrei pelo caminho, ainda me pergunta. Onde tu, pai, foi que me jogastes? Eu te pergunto. Euzinho! Num oásis imenso feito por encruzilhadas que nunca mais acabava. Fui simbora, sim, convicto, não conto ao senhor? Caminhei léguas alternando a noite e o dia, um após o outro, sol, chuva, frio, intempéries; dormindo sobre paralelepídedos, catando o que comer, fumando bitucas, até chegar ao cume do que ambicionava. Lá, os dez mandamentos como o senhor prescreveu. Habitei-me na escuridão da noite de dentro das cavernas vazias de estrelas entre lobos, ursos, chacais e morcegos. E habituei-me sem as palavras. De quem é o coração mais selvagem? Por ti, pai, para provar a sua morte e a minha glória, sangrei os dedos ao escalar a colina, cuspi no cálice pra ter o que beber; comi até o Bambi, numa das noites de lua cheia e uivos caninos, pai. O senhor não acredita? Pois não? Eu blasfemo e muito sabe o senhor enganado que com esta taça de barro, esta mezona de carvalho trincado ao meio, este cachimbo, o fogão a lenha mais a tentação de Maria do Rabo Rico na cozinha, podem me comprar. Engana-te, velho! Seu eu conseguisse me despregar daqui de cima, ah! se eu conseguisse, eu mostraria ao senhor com quantos paus se faz uma cruz de ponta cabeça e riscaria no chão, em nome do Capeta, o Curumim. É.


GIULIANO GIMENEZ

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