eu que por pouco não sou transparente
apesar de minha solidez aflitiva
filho de todas as razias
eu que por mais um pouco seria invisível
que saio de casa para entrar no mundo
que enxergo, como henrika,
peixes nas poças de chuva
eu que sou um franciscano brutal
que alimento os pombos com parafusos
um relógio onde o tempo se estraga
que nunca superei as drogas
que não venci aquela paixão
que não posso ver uma mesa de cartas
eu que como papel entre
tragos de tinta
que tenho a chave para as praças da cidade
eu que bebo com os cavalos as águas estigiais
que oxido a lua de urina
que construí escadas que vão dar no teto – como
madame winchester –
que inventei janelas inacessíveis
construí mansardas sem alicerces
na mudança meus fantasmas
e uma mitologia de cães cegos
eu que sou esta florescência de miasmas
cuja alegria é uma careta
cujo sangue é de auroras
cujos ossos são de tijolos e a alma
de querosene
meu sonho será apodrecer
exalando música
eu que guardo uma gaivota na traquéia
que tenho cabelos no coração
e rins de diamante
que saio pelas ruas, charanga de calúnias
que vadio as estrelas
que desconfio dos poderes sobrenaturais
da linguagem
e ainda assim digo, grito desesperadamente as coisas
como arrastado por um desacampamento
de ciganos, como se uma guerra (ou uma saudade)
começasse por minha causa
como se um mágico tirasse moedas de minha
boca e as esferográficas guardassem a velha
herança das navalhas ruins,
como se houvesse fios de alta-tensão
entre nossos corpos
eu que vivo o precário vaudeville dos instantes
que aprendi a dar cambalhotas
com os bobos
de shakespeare e os retardados
cujo bom-senso é o estopim da combustão
cujo reino é uma cratera
cuja coroa é o nariz
do palhaço, e o assassinato um ressuscitar-se
eu que sou, às 4:00 da manhã,
a única janela acesa que me intoxico de deus
que perdi a identidade, o ônibus, a graça
e os sisos e o bilhete premiado
e o fio de ariadne,
a lembrança do inferno e do paraíso
e volto para casa sangrando
como quem assobiasse
eu que faço parelhas aos afogados
que sempre quis ser o poeta de tróia
o poeta da boca-de-fumo, o poeta de porta-de-cadeia
o poeta dos obituários, o poeta oficial das alvoradas,
o poeta oficial da vila hauer
e que, ao fim, não sou poeta oficial
nem de mim mesmo
eu que toco trombone
dentro de uma piscina vazia
eu que tenho queimaduras de terceiro grau
por dentro
que cato os rebotalhos da cultura materialista
e reciclo
do jeito que dá e não dá
e junco de esperança
todos os impedimentos
eu, exilado do país infinito
que manipulo venenos, que enlouqueço sozinho
um ser fronteiriço
entre azul e precipício
e subo a montanha
como um profeta que engoliu a língua
eu que escovo os dentes
com chuva e maçarico
eu, meu corpo
que tenho a espessura da vida
e o peso exato
de minha morte
eu
coluna de fumaça
espelho quando mente
ferragem retorcida
rosto em branco, sem traços (como um edifício ou um anjo
transitório)
minha cara inconfundível
uma palavra
(r
el
âm
pa
g
o) que não acaba nunca
Rodrigo Madeira